Pelo menos três comunidades tradicionais do Ceará (Quilombo do Cumbe, em Aracati, Prainha do Canto Verde, em Beberibe, e Tremembé da Barra do Mundaú, em Itapipoca), estão enfrentando graves conflitos nos últimos dias. As áreas, respectivamente um território quilombola, uma reserva extrativista e uma terra indígena, enfrentam um inimigo em comum: empresários com empreendimentos no local, em especial de turismo de massa, energia eólica e carcinicultura.
Quando essas empresas chegaram à região, trouxeram também o discurso de progresso: desenvolvimento, modernização e geração de emprego e renda; o convencimento de que é necessário trabalhar para alguém. Como prática, estimularam a divisão interna e a fundação de associações para apoiar suas causas. Afinal, são eles os interessados em lucra com a exploração das pessoas e dos ecossistemas.
A discórdia semeada dentro das comunidades se reflete em uma disputa sobre a vida e o cotidiano em cada um desses territórios. Nessa batalha, de um lado estão comunitários defensores de suas identidades, e do outro, aqueles que se opõem às políticas específicas para essas comunidades. Agora, os opositores decidiram manifestar o desacordo através de ações de violência.
O único quilombo da praia
Das 34 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Palmares no Ceará, o Cumbe é a única localizada na Zona Costeira. Incrustada entre o mar, as dunas e o mangue, a comunidade é formada por 150 famílias que vivem da pesca, da agricultura familiar, da cata do caranguejo, da mariscagem e do artesanato. Localizada em Aracati, a 148 km de Fortaleza, desde os anos 1970, com a chegada da Cagece, o território é espaço de uma série de conflitos, todos com o mesmo cerne: de quem é a terra?
Para o Estado e para a maior parte dos moradores, o território é quilombola. Prova disso é que, após a certificação da Fundação Palmares, em 2014, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) já cadastrou cerca de 100 famílias no processo de demarcação de terras. Para uma pequena parcela da comunidade, entretanto, a identidade não vale; esse grupo, desde o final de novembro, vem realizando ações sistemáticas e incisivas no sentido de atravancar e até mesmo anular a demarcação.
No último dia 29, o grupo esteve em uma audiência no Incra, com a presença do deputado federal José Airton Cirilo (PT-CE), para solicitar o cancelamento do processo de demarcação de terras na comunidade e contra o "título de quilombolas" para o local. Na semana seguinte, o mesmo grupo fechou a Ponte da Canavieira, principal acesso para o Cumbe.
Neste mesmo dia, professores, estudantes universitários e manifestantes que realizariam atividades no local tiveram os ônibus e os três carros onde estavam ameaçados de serem queimados, caso tentassem passar. Quem estava do outro lado da Ponte também não conseguia sair. “Foi muito doloroso você ser privado do seu direito de ir e vir por um grupo de pessoas que não aceita sua identidade, uma identidade que a gente se reconhece, que já foi certificada”, conta Luciana dos Santos, uma das moradoras do Cumbe.
Os debates para o reconhecimento da comunidade como quilombola tiveram início em 2010, embora “desde criança, a gente escutava essas histórias de que aqui teve escravo”, relembra Luciana. “Cumbe”, inclusive, é uma palavra de origem africana que significa quilombo. A origem do nome da comunidade, os moradores só descobriram no processo. “Ser quilombola, se considerar negro, vem do seu sangue, da sua história. Aqui, temos uma luta muito grande, que é a mesma luta dos nossos antepassados, de resistência. Independente de a Fundação Palmares ter dado esse certificado, a gente é na alma e no sangue. O certificado veio para garantir nossos direitos”, conta Luciana.
Esses direitos estão, inclusive, previstos na Constituição Federal. A advogada Cecília Paiva, do Coletivo Urucum, explica que “os artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 garantem a proteção do patrimônio cultural brasileiro material e imaterial, falando expressamente em manifestações afro-brasileiras, diversidade étnica e do tombamento de todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”. Por isso, destaca a advogada, “não restam dúvidas sobre a intenção de proteger as comunidades quilombolas, seu território, a biodiversidade existente para a sua reprodução cultural e seu modo de criar, fazer e viver”.
A luta pelos territórios e modos de vida tem na institucionalidade judicial uma de suas maiores arenas. São dezenas de processos de disputa de terras levantados em todo o litoral cearense. Todavia, isso não é uma garantia de que o litígio aconteça de forma democrática. “A desigualdade entre sujeitos de direitos e empresários no acesso às instituições e às políticas está entre os principais fatores de degradação social e ambiental. Essas desigualdades são fortemente marcadas pelo racismo e pelo etnocentrismo; não à toa, as principais prejudicadas são as comunidades negras, quilombolas e outras tradicionais e os povos indígenas”, descreve a coordenadora do Instituto Terramar e membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental Cristiane Faustino.
Reserva Extrativista: a gestão coletiva da terra
A Prainha do Canto Verde é um emblema. Decretada Unidade de Conservação no modelo de Reserva Extrativista (Resex) em 5 de junho de 2009, a comunidade tem sua luta por direitos sociais e território reconhecida até internacionalmente. Na luta pela terra, pode-se dizer que os “prainheiros”, como se denominam, foram vitoriosos. “O processo da reserva extrativista em si é um processo já concluído. A reserva foi decretada”, enfatiza Alberto Ribeiro, um dos moradores da comunidade. O processo já está fase final junto ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o órgão federal responsável pela gestão da unidade, a construção do Acordo de Gestão e o Plano de Manejo.
Embora absolutamente legal, até hoje a Resex é questionada por um empresário de Fortaleza que alega ser dono de parte significativa do território terrestre demarcado. Esse empresário conseguiu apoio na Associação Independente de Moradores da Prainha do Canto Verde (AIMPCV), uma entidade local que passou a reunir os moradores que são contrários à Reserva. No debate de ideias, todos se expressam: ao caminhar pela Prainha, a disputa de posições é visível nos muros.
A intimidação através da violência, entretanto, ocupou espaço significativo no conflito. No dia 7 de dezembro, enquanto o ICMBio e a Polícia Federal realizavam uma operação na comunidade retirando diversas marcações ilegais, esse grupo de comunitários anti-Resex tentou impedir os trabalhos. Eles tocaram fogo no lixo dos moradores e em pneus para impedir a passagem dos carros e destruíram meios de trabalho de pessoas ligadas ao movimento comunitário, como uma barraca de praia e coqueiros. Além disso, pessoas ligadas ao setor anti-Resex já acumulam denúncias de assédio sexual e estupro contra mulheres da comunidade e servidoras públicas que atuam no local.
Além do próprio ICMBio, que estava no local na ocasião, outros entes públicos como a Secretaria de Justiça e Cidadania, a Defensoria Pública do Estado e a Polícia Ambiental, foram acionados para interferir no conflito e garantir a segurança dos comunitários. O clima de tensão melhorou, mas uma perspectiva de resolução definitiva ainda não existe. “Quando isso vai acabar? No dia que não tiver mais terra. No dia que a comunidade, como tantas outras, não tiver mais um espaço para nenhum nativo morar. Enquanto tiver, sempre vai ter alguém querendo se aproveitar. Isso é a história do litoral”, explica Alberto.
O Ceará tem índio sim
O Ceará conta com 14 etnias indígenas reconhecidas, no entanto, até o ano de 2016, somente uma Terra Indígena teve seu processo de demarcação oficialmente finalizado. Entre os povos que lutam pela demarcação de suas terras, estão os Tremembé da Barra do Mundaú, situados no município de Itapipoca (CE), localizado a 136 km de distância da capital Fortaleza.
Os Tremembé sofrem com o acirramento da luta pelo direito à terra desde 2010 quando o empreendimento turístico denominado “Nova Atlântida” intensificou a investida sobre os 3.580 hectares da Terra Indígena para a construção de um imenso complexo turístico. Atualmente vivem na região cerca de 130 famílias que se identificam como Tremembé da Barra do Mundaú e que ainda dividem seu território com outras famílias que não se identificam como indígenas.
Em agosto de 2015 a terra foi declarada como indígena, pelo então ministro da Justiça José Eduardo Cardozo e o processo de demarcação tem caminhado a partir da pressão do povo Tremembé. Uma das maiores reivindicações da população indígena, enquanto não ocorre o processo de “desintrusão”, que consiste na saída dos ocupantes não indígenas, é que cessem as queimadas na terra. Episódios de violência como as ameaças contra as lideranças do povo Tremembé, são práticas comuns realizadas por aqueles não querem ver a terra oficialmente demarcada.
No dia 7 de dezembro, o Ministério Público Federal (MPF) realizou uma audiência pública, no distrito de Barrento, com a presença dos não índios, que ainda residem na Terra Indígena, no intuito de explicar os processos que envolvem a demarcação da terra, como o levantamento fundiário que será realizado para estipular a indenização sob as benfeitorias construídas pelas famílias que terão que deixar a terra indígena, e alertar sobre o impedimento de brocas e queimadas na terra.
O povo Tremembé da Barra do Mundaú também esteve presente na audiência pública e, desde o primeiro caminhar na comunidade rumo à audiência, já se sentia que os ânimos iriam se alterar: entoando seus cantos tradicionais, os indígenas foram alvo de chacota. Logo após a audiência pública, no dia 9 de dezembro, as ameaças aos indígenas se intensificaram: eles foram perseguidos e xingados durante seu deslocamento nas aldeias, as ameaças contra a vida das lideranças se intensificaram, uma grande extensão de mata foi queimada, os não índios continuam a utilizar da prática da queimada em seus roçados e parte das placas e marcos da demarcação física, que haviam sido colocados na mesma semana da audiência, foram destruídos.
Após as primeiras denúncias sobre as áreas queimadas, duas pessoas foram detidas, mas liberadas em seguida. Os indígenas relatam que após a liberação foram escutados rojões na comunidade em forma de comemoração e, desde então, a prática da queimada em matas próximas aos rios, áreas de carnaubais e roçados tem sido diária. “Onde está nosso direito? Nosso direito à terra? Cadê a lei que protege? A gente precisa que a justiça tome uma providência. Ou vai tomar uma providência só quando morrer alguém?”, indaga Erbene Rosa, liderança Tremembé.
Para Luanna Marley, advogada do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito, que acompanhou a audiência pública a convite do MPF, “os órgãos já foram devidamente acionados, como a Polícia Federal. O próprio Ministério Público Federal realizou audiência pública com a finalidade de tratar da situação, com a participação do Incra, da Funai e a participação dos Tremembé e dos não-índios, onde se esclareceu sobre como se dá a demarcação, assim como explicado sobre as situações que se configuram como crimes ambientais e crimes contra os índios. Agora precisamos que, em caráter de urgência, as devidas providências sejam tomadas no sentido de proteção e defesa dos índios Tremembé e de suas terras."
Os Tremembé da Barra do Mundaú tem certeza de que o processo de demarcação é mais um passo de conquista da luta. São anos lutando para ter a terra demarcada e protegida em relação a degradação ambiental. “As pessoas que não se identificam como indígenas não aceitam nenhuma das ações de proteção ao meio ambiente, são pensamentos diferentes. Isso foi o que a empresa Nova Atlântida conseguiu implantar no pensamento dessas pessoas”, comenta a liderança Tremembé Adriana Carneiro.
Sobre as ameaças sofridas, Adriana Carneiro aponta que os indígenas já eram ameaçados antes “da demarcação física, mas depois da audiência aumentou, porque os não índios veem as lideranças como empecilho. Agora está sendo pior porque realmente percebi, e o povo [Tremembé] está percebendo, que ao longo dos dias, quanto mais os dias passam, parece que o ódio vai crescendo entre essas pessoas [não índios]. E que de fato eles estão esperando uma oportunidade. Na minha própria casa me sinto ameaçada. Não há justiça em relação a isso”, disse.
Se o conflito é a prática, a resistência é a regra
Apesar das dificuldades, nenhuma das comunidades desiste da luta por suas terras. “Nós somos pescadores, precisamos do mangue, do rio. Por isso esses conflitos. É uma luta contra o poder econômico”, reitera Luciana Santos, da comunidade Quilombo do Cumbe.
Alberto Ribeiro, da Prainha do Canto Verde, destaca que a demarcação do território faz diferença na vida das famílias. “Se a gente hoje não fosse uma reserva, não tivesse o apoio, mesmo fragilizado e com certa limitação, do Governo Federal através do ICMBio, nós estaríamos aqui numa outra história. A nossa história seria totalmente diferente e com muito mais prejuízo, especulação, disputa”.
Edição: José Eduardo Bernardes
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