A Rede de Médicas e Médicos Populares está reunida este fim de semana em Brasília, em sua III Plenária Nacional, que reúne profissionais de distintas regiões do país interessados na defesa do direito universal à saúde e do Sistema Único de Saúde (SUS). No roteiro da programação, debates e articulações discutem os rumos do movimento, cada dia mais preocupado com o contexto de avanço conservador no país.
“Este é um momento em que a gente dá um salto de qualidade e quer discutir os próximos passos para enfrentar os desafios, incluindo os de atrair mais gente, de formar quadros, fazer cursos de formação e traçar estratégias de base que liguem mais ainda o médico popular ao povo”, explica o médico Thiago Henrique, da secretaria nacional da Rede.
Ele acrescenta que a todo momento o debate político atravessa os movimentos desencadeados pela Rede, que foi criada em 2015 e hoje conta com pelo menos 800 médicos espalhados pelo país.
“Queremos crescer com mais qualidade e disputar ideologicamente a medicina e o conceito de saúde dentro da categoria médica, ao mesmo tempo em que estabelecemos uma ligação mais orgânica com o povo. Inicialmente, a prioridade que se coloca é a afirmação de que saúde não é uma mercadoria”, detalha o médico, ressaltando que a luta envolve disputas desde a formação dos profissionais da área até a prática médica propriamente dita.
Para a médica Nathalia Neiva dos Santos, que veio de Uberlândia (MG) para participar da plenária, a prática na rede pública joga os profissionais da área num contexto de contradições.
“As universidades, em geral, formam os estudantes dentro do SUS. Mas, ao mesmo tempo em que lidamos com o atendimento ao povo e sabemos que aquele sistema precisa existir, somos bombardeados com a ideia de que precisamos ficar ricos e escolher especialidades que sejam mais rentáveis, então, tem essa contradição. Mas é preciso ter sensibilidade e empatia pelas pessoas de quem estamos cuidando, porque inclusive são os sujeitos que nos ajudam a ser médicos”, considera.
Conjuntura
Ao longo da mesa de abertura da plenária, na manhã deste sábado (10), os debates giraram em torno da atual conjuntura política nacional e seus reflexos na saúde pública. O avanço neoliberal, com articulações rumo a uma maior precarização e à privatização dos serviços públicos, foi apontado como o ponto-chave da cartilha de luta dos profissionais da saúde.
Entre outras coisas, a enfermeira Juliana Acosta, conselheira nacional de saúde pela Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), destacou os riscos que circundam a garantia da prestação de saúde pública.
“O Ministério da Saúde tem dito que é preciso rever o tamanho do SUS porque o orçamento disponível não cabe nas competências dele. Ora, mas o SUS já não é nem do tamanho que deveria ser. Nós sabemos que esse tipo de discurso vem pra aumentar ainda mais o lucro da iniciativa privada, que, no caso dos planos de saúde, já tem faturamento anual na casa dos R$ 100 bilhões”, destacou a conselheira.
Ela também descreveu a disputa ideológica que atravessa os debates da saúde. “No caso do Mais Médicos, estão querendo atingir os eixos estruturantes do programa, sobretudo o aspecto da formação, que é o que mexe com o corporativismo médico. As entidades médicas corporativas têm reagido porque elas acham que é um afronta e que o governo cubano vai doutrinar a população, etc. A gente sabe que, na verdade, trata-se de uma preocupação com a reserva de mercado deles”, critica a enfermeira.
Para o economista Carlos Ocké, doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o momento atual no Brasil escancara a relação entre o capital privado e a insuficiência crônica de recursos na saúde pública.
“O mercado, pra funcionar de maneira capitalista, carece de constantes recursos públicos. Ele precisa do fundo público pra se reproduzir de forma ampliada. (…) Com a proposta de reforma da Previdência, por exemplo, ficou ainda mais claro o apoio explícito que há à iniciativa privada. É uma ofensiva contra o Estado”, analisa.
O economista destaca ainda as vias de luta e resistência que devem ser percorridas pelas forças progressistas. “As relações mercantis no setor de saúde nunca serão extintas por decreto. É preciso acumular forças em direção à valorização dos serviços públicos de qualidade”, disse, em referência à aglutinação de grupos e lideranças alinhados à esquerda.
Concentração de riquezas
Na leitura do economista João Pedro Stedile, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as crises política e econômica trouxeram a reboque a crise social, que estaria em sintonia com os rumos tomados pelo país nos últimos governos.
“Nós tivemos distribuição de renda, mas não foi feita nenhuma reforma estrutural que tratasse da composição das classes e das riquezas. O governo do Partido dos Trabalhadores (PT) só distribuiu renda, não riqueza, ou seja, tirou muita gente da pobreza, mas continuou concentrando intensamente fábricas, terras, bancos. Temos atualmente no Brasil dois bancos que concentram o capital financeiro, por exemplo. Então, é esse processo que leva ao agravamento dos problemas sociais, com aumento do deficit habitacional, da dificuldade de acesso à saúde, etc.”, explanou o economista durante o debate.
Entre as tarefas que precisam ser desempenhadas pelas forças sociais neste momento, Stedile destaca a intensificação mobilização popular. “É preciso estimular todos os tipos de massa. Se a gente ficar só com passeata de estudante na Avenida Paulista e no Rio de Janeiro, não vai acontecer nada. Essas manifestações são importantes, mas elas só são um termômetro, não conseguem enfrentar a burguesia de fato, então, tem que ampliar a mobilização”, finalizou o economista.
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