A grande burguesia liberou forças que não está conseguindo mais controlar
É público e notório que se instalou um conflito institucional no Estado brasileiro. Ele opõe tanto o Executivo quanto o Legislativo Federal a setores politicamente ativos do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal. O que não é do conhecimento de todos é que esse conflito institucional que atravessa o Estado brasileiro é, também e principalmente, um conflito de classes. Os setores politicamente ativos do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal representam de um modo muito peculiar, embora já verificado em outros momentos da história política do Brasil, a alta classe média, que foi a base de apoio do golpe de Estado que depôs Dilma Rousseff; o Executivo Federal e as forças majoritárias no Legislativo representam a fração da burguesia que foi a força dirigente desse golpe de Estado. A força política dirigente do golpe, a fração da burguesia brasileira associada ao capital internacional e interessada na restauração do neoliberalismo puro e duro, perdeu o controle da base de massa do golpe, cuja mobilização a burguesia incentivou, até agosto de 2016, para poder depor a presidenta Dilma.
Os conflitos políticos envolvem classes e frações de classe variadas e repercutem, de maneiras distintas, nas instituições políticas e nas lutas de ideias. Parte importante do pensamento socialista e de esquerda no Brasil não logra analisar o conflito institucional atual como conflito de classe porque restringe a observação ao conflito capital/trabalho e descura a importância do fracionamento que divide a burguesia e também a importância da presença política da classe média. Até 2014, a burguesia brasileira encontrava-se dividida diante da política econômica, social e externa dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). A fração que denominamos burguesia interna apoiava ativamente, como se pode verificar pela consulta à imprensa das associações empresariais, a política neodesenvolvimentista desses governos, enquanto a fração integrada ao capital internacional e esse próprio capital, cujos interesses eram vocalizados pelo PSDB e por agências internacionais variadas, opunham-se a tais políticas.
A partir de 2013, a burguesia associada, valendo-se principalmente da oportunidade oferecida pela queda do crescimento econômico e pela mobilização da alta classe média contra o governo, iniciou uma ofensiva política restauradora para derrotar o neodesenvolvimentismo e restaurar a política neoliberal. As peripécias da crise, seus variados componentes, fizeram com que parte importante da burguesia interna mantivesse uma posição de neutralidade favorável à ofensiva da fração adversária ou, inclusive, aderisse a ela – como foi o caso patente dos industriais paulistas representados pela Fiesp. Parte ainda da burguesia interna foi violentamente atacada pela Operação Lava Jato e capitulou. A correlação de forças mudou radicalmente e o golpe de Estado foi bem-sucedido. Muitos analistas e observadores socialistas imaginavam que, deposto o Governo Dilma, o comando da Lava Jato desmobilizaria em pouco tempo a operação. Não foi o que aconteceu. O PT é sim o inimigo principal da Lava Jato e da alta classe média, mas não é o seu único inimigo.
Juízes, procuradores e delegados são, ao mesmo tempo, burocratas do ramo repressivo do aparelho de Estado e integrantes da fração superior da alta classe média. A ação desses agentes está, por isso, duplamente determinada. Como agentes da ordem, insurgiram-se contra aquilo que consideram a condescendência dos governos do PT para com os movimentos populares. Preferem a repressão dura dos governos tucanos – FHC, Alckmin, Beto Richa e outros. Como segmento social e economicamente privilegiado do funcionalismo público, têm a mesma disposição da alta classe média contra as políticas distributivas dos governos do PT. Até aí, falavam a linguagem do campo burguês. Ocorre que foi a agitação contra a corrupção que uniu esses agentes do Estado à mobilização de rua da alta classe média. Por razões que não podemos analisar aqui, a centralidade da bandeira da luta contra a corrupção é tradição da classe média, não do movimento camponês ou do movimento operário. Esse tipo de agitação moralista desse setor social é uma constante nas crises políticas da história do Brasil republicano. A alta classe média, convocada pelo MBL e pelo Vem pra Rua, passou a se reconhecer politicamente na Operação Lava Jato e os responsáveis dessa operação assumiram o papel de representantes políticos desse setor social. Depor o governo do PT era o objetivo principal, mas o discurso contra a corrupção não era mero pretexto. Mesmo sem o respaldo da mídia burguesa e mesmo contra os aliados da véspera, a alta classe média, ou parte dela, não se conforma com uma postura de acomodação e quer dar sequência àquilo que julgam ser a moralização do Brasil.
O Governo Temer está cumprindo tudo o que prometeu ao capital internacional e à burguesia associada, mas há diferenças de interesses e de valores entre a alta classe média e a burguesia. A base de apoio do golpe quer prosseguir na luta e está criando turbulência política que não interessa em nada à força dirigente do golpe de Estado. Essa última pretende “estancar a sangria da Lava Jato” e voltar à normalidade para impor tranquilamente o arrocho fiscal, as novas rodadas de privatização e de abertura da economia ao capital internacional.
A grande burguesia, quando atiçou ao longo do ano de 2015 e de 2016 manifestações na Avenida Paulista, em Copacabana, no Farol da Barra e em outros logradouros de nossas capitais, liberou forças que não está conseguindo mais controlar. Domingo, dia 04 de dezembro, o MBL e o Vem pra Rua realizaram novas manifestações em dezenas de cidades do país e desta vez contra o presidente do Senado e da Câmara Federal e em defesa do “Partido da Lava Jato”. A destituição de Renan Calheiros da presidência do Senado na segunda-feira por um ministro do STF foi mais uma demonstração da sintonia fina existente entre o Judiciário e a alta classe média. A relação é forte: representantes e representados reconhecem-se mutuamente como tais. Até onde conseguirão ir?
*Armando Boito Jr. é professor Titular de Ciência Política da Unicamp, editor da revista Crítica Marxista e um dos fundadores do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) do IFCH-Unicamp.
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