O Brasil vive uma ruptura democrática através de um golpe parlamentar que anulou a decisão do voto popular de 2014 sobre a escolha da presidenta eleita e sobre a política econômica. O regime ilegítimo de Temer pretende aprofundar medidas de “austeridade”, como cortes em investimentos sociais como saúde e educação, que foram rejeitadas nas urnas e causarão maior instabilidade econômica.
Um breve resumo histórico sobre as mutações do sistema financeiro internacional nas últimas décadas nos ajuda a entender o cenário atual.
O período pós-Segunda Guerra Mundial se caracterizou pela hegemonia do pensamento keynesiano e pela adoção de políticas que ampliaram programas de bem-estar-social e direitos trabalhistas nos Estados Unidos e na Europa. Sistemas de educação, saúde, seguridade social e estímulo ao mercado interno de serviços básicos foram impulsionados pelo Estado para alavancar a economia naquele período, que ficou conhecido como a “era de ouro” do capitalismo.
A década seguinte foi marcada pela chamada crise de superacumulação de capitais e pelo aumento da concentração de poder dos bancos privados.
A partir os anos de 1960, a disponibilidade de capitais “ociosos” estimulou a mobilidade de capitais portadores de juros, que se deslocam para países periféricos na forma financeira, o que veio a gerar a dívida externa nos países do “Terceiro Mundo”.
A exportação de capitais ocorreu também através da criação de empresas subsidiárias de multinacionais que “migram” para países periféricos em busca de força de trabalho e matérias primas baratas.
A industrialização brasileira, caracterizada como “modernização conservadora”, se insere neste cenário e acaba por gerar a crise da dívida externa nos anos 1980, conhecidos como a “década perdida”. O contexto internacional naquele período é marcado pela liberalização das taxas de câmbio e de juros, o que provoca maior vulnerabilidade e estimula ataques especulativos, causando uma série de colapsos econômicos em vários países, inclusive no Brasil.
As políticas neoliberais adotadas nos anos 1990, que incluíram a privatização de setores estratégicos, causam maior vulnerabilidade econômica, recessão e elevação das taxas de desemprego. Tais medidas de “ajuste estrutural”, adotadas pelo governo do PSDB sob o comando do Fundo Monetário Internacional (FMI), geram “arrocho” salarial e perda de direitos trabalhistas, o que aprofunda a crise.
A desregulamentação dos mercados financeiros é acompanhada pela criação de novos mecanismos de investimentos, que incluem derivativos cambiais e emissão de títulos das dívidas públicas dos Estados nacionais. Nenhum país está fora deste cenário ou imune ao movimento especulativo do mercado financeiro.
Porém, é evidente que o retorno do debate sobre a eficácia de medidas keynesianas como proteção em momentos de crise nos ajuda a compreender o resultado de sua aplicação no Brasil entre 2003 e 2014, quando se registrou um nível histórico de geração de emprego. Não há nada de radical nessas políticas, que têm sido defendidas por economistas neokeynesianos como Paul Krugman, Joseph Stiglitz, Thomas Piketty e Jean Tirole.
O atual momento do capitalismo impõe limites objetivos em relação a possibilidades de um novo modelo de industrialização, tanto nos países centrais quanto na periferia. A liberalização financeira, que permitiu maior mobilidade de capitais, forjou uma nova divisão internacional do trabalho, principalmente com o deslocamento do principal centro de manufaturas para a China. Este processo foi descrito pelo economista Luiz Gonzaga Belluzzo como global sourcing (“terceirização global”) e acentuou o papel do Brasil como produtor de matérias primas agrícolas e minerais.
Ao mesmo tempo, observa-se um nível de interdependência econômica mundial sem precedentes, que permite o avanço de espaços multilaterais de negociações políticas e comerciais, inclusive com o surgimento do BRICS (grupo de países formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
As economias dos Estados Unidos e da China, por exemplo, possuem uma relação praticamente simbiótica, já que os produtos chineses (grande parte produzida por subsidiárias de empresas estrangeiras) são contemplados com tarifas especiais de exportação para o mercado estadunidense e, por sua vez, a China é a maior detentora dos títulos da dívida pública dos Estados Unidos.
A crise econômica mundial que se tornou aparente em 2008 revelou o efeito dominó causado pela mobilidade de capitais e, ao mesmo tempo, a centralidade do papel dos Estados nacionais frente a ondas especulativas, como no caso das bolhas nos mercados imobiliários dos Estados Unidos e da Europa.
A crise evidenciou, principalmente, a falência das políticas de “austeridade” adotadas por países europeus que optaram por promover cortes em investimentos governamentais, aprofundando a recessão econômica.
As propostas do regime de Michel Temer soam exatamente como as políticas recessivas dos anos 1990, e que também se mostraram desastrosas quando aplicadas na Europa recentemente. Além de atacar programas sociais, o regime de Temer busca enfraquecer o papel do Estado.
No momento atual de desregulamentação financeira em nível internacional, o controle estatal sobre investimentos e sobre recursos naturais estratégicos é fundamental para proteger as economias nacionais.
Medidas de estímulo à economia, como o programa Bolsa Família, possuem efeito multiplicador de expansão do mercado interno. Este tipo de política não tem nada a ver com “bondade”. Trata-se, na verdade, de adotar aquilo que Keynes caracterizou como “lubrificante” na “engrenagem” capitalista.
Os governos do PT rejeitaram políticas econômicas estruturantes como a reforma agrária e a reforma urbana, a democratização da terra e incentivos à produção diversificada de alimentos. Ainda assim, tais medidas não poderiam ser caracterizadas como “radicais”, pois significariam apenas o aprofundamento do papel do Estado como indutor de estímulo econômico, mas seriam fundamentais para a realização de diretos básicos.
Atualmente, o debate sobre política econômica tem sido dominado por forças reacionárias que pretendem desmontar do Estado social, principalmente através da PEC 241, com o objetivo de congelar investimentos em educação e saúde por 20 anos (é preciso frisar que são investimentos e não “gastos”, pois contribuem com a economia). Assim, pretendem consolidar seu golpe contra o futuro.
Maria Luisa Mendonça é doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
Edição: ---