As eleições municipais de 2016 são as primeiras após o golpe. Por isso mesmo, a grande mídia, os partidos de direita e o judiciário venal impostam o discurso de que o processo eleitoral seria a prova da vitalidade da democracia brasileira. Essa narrativa, entretanto, não resiste à menor análise. Só para se ter uma ideia, nas principais capitais do país, o número de votos brancos e nulos, somados com as abstenções, superou a votação dos primeiros colocados em candidaturas a prefeito. O PSDB e o PMDB, patrocinadores políticos do golpe, foram os mais votados, embora estejam envolvidos em inúmeras denúncias de corrupção e sejam reconhecidamente os portadores de um programa anti-popular, anti-nacional e anti-democrático. Com a aparência de uma democracia, o golpe veio, enfim, para destruir os direitos sociais e trabalhistas conquistados a duras penas, durante anos de lutas, e colocar o orçamento público nas mãos do setor privado. Para discutir essas questões, o Brasil de Fato MG conversou com a assistente social e ex-vereadora Neila Batista.
Brasil de Fato – Em um regime democrático, seria normal qualquer força política de direita ou esquerda, em algum momento, sofrer derrotas eleitorais. Entretanto, as eleições municipais de 2016 foram realizadas em um contexto muito específico, pois são as primeiras após o golpe. Que implicações isso traz para a política no Brasil?
A narrativa que foi construída ao longo do tempo pelas forças conservadoras, setores da mídia, judiciário e parlamento demonizou a política, a fim de incutir nas pessoas um nojo à política e aos políticos. Esse foi o grande mote trabalhado para ganhar corações e mentes da população. No particular, houve uma perseguição ao PT, seguindo a lógica de colocá-lo como o partido responsável por todos os absurdos, não deixando espaço para o devido questionamento de outros setores que cometeram equívocos maiores ou tão graves quanto o PT, isentando-os de toda a culpa. O PT, no centro do processo, tornou-se o partido a ser dizimado.
Esse é o tom do resultado eleitoral. Há uma perda significativa de votos do PT, mas também da esquerda como um todo, que perdeu prefeituras em todo o Brasil. Em Minas não foi diferente. Então, o somatório da demonização da política e perseguição, seletividade, criminalização de partidos de esquerda e do movimento popular formou o caldo necessário para esse resultado. Isso é grave.
Mais uma vez, os setores conservadores, num quadro de proibição do financiamento empresarial, lançaram mão do Caixa 2. Não foi preciso ser muito perspicaz para ver, nas campanhas, a contratação acintosa de pessoas, numa estratégia de compra do voto. Uma pessoa pode até dizer que está ganhando para trabalhar para um candidato, que não é aquele o seu voto, mas, em muitos casos, é difícil a pessoa ficar tanto tempo fazendo trabalho de campanha para um candidato e não votar nele. Então, o poder econômico teve um peso grande.
Se olharmos os números, a abstenção e ausência das pessoas no processo eleitoral responde um pouco a essa situação. Nesse momento delicado, políticos fizeram um discurso mentiroso e demagógico, dizendo que não são políticos, enganando as pessoas, fazendo pensar que não são iguais aos demais, embora estejam em partidos e disputem eleições. Esse quadro complexo não ajuda muito os setores progressistas. Embora algumas candidaturas avançadas tenham saído vencedoras, e isso é muito bom, eu diria que o conjunto da esquerda saiu perdendo. Assim, não acumulamos força suficiente para propor uma boa reforma política e, se continuarmos com as atuais regras, continuaremos a ver o poder econômico ocupando os principais espaços, com homens brancos, velhos, ricos.
O PSDB e o PMDB alcançaram as votações mais expressivas, embora tenham vários nomes envolvidos na Lava Jato. Por que isso aconteceu?
Muitas pessoas estão perdidas, dirigidas por interesses que elas incorporaram como se fossem seus, embora não sejam. Partidos tão responsáveis por coisas erradas são denunciados e não acontece nada. Mas isso se dá porque também há um completo envolvimento do judiciário, que é opaco, manipulável, tem preço. Dependendo de quem pagar mais, ele define o destino da ação. Do mesmo modo, a mídia também trabalha para quem lhe é útil e vai tratar a esquerda como o único responsável por todos os problemas, não dando publicidade sobre os equívocos das outras forças.
A preocupação desse golpe nunca foi a corrupção, mas o fato de que o país começou, de maneira tímida, a distribuir renda, permitir que pobres e negros ocupassem espaços que antes eram destinados apenas à burguesia. O objetivo do golpe também foi entregar a riqueza nacional. Enquanto não conseguirmos furar a bolha dessa narrativa, dessa lógica de fazer do povo biruta de aeroporto, vamos amargar duramente a retirada de direitos.
Concretamente, o que o povo tem a perder com esse novo arranjo?
O cenário é ameaçador, com os golpistas na Presidência e no Congresso determinados a fazer terra arrasada nas políticas sociais, direitos trabalhistas e previdenciários. Conquistas de muita luta vão sendo perdidas e a gente parece ficar sem condições de convencer a maioria dos trabalhadores sobre os riscos que isso traz para a sobrevivência. Vamos enfrentar um período longo de perda de direitos, dificuldade de garantir acesso a políticas de saúde, educação, assistência social, segurança alimentar.
Após oito anos de política neoliberal em BH, com Márcio Lacerda (PSB) e o PSDB, existe alguma possibilidade de que outro projeto ganhe a Prefeitura ou o resultado do primeiro turno já aponta, de imediato, para a continuidade do modelo neoliberal?
Em Belo Horizonte, o quadro no segundo turno é dramático, pois temos uma disputa entre o ruim e o pior. Em qualquer um dos casos, o que eu vejo é o aprofundamento da lógica transferir de recursos públicos para a iniciativa privada, retirar recursos da saúde e educação, pouco ou nenhum investimento em habitação, aprofundamento das desigualdades, em suma, algo péssimo para as periferias, para os mais pobres, algo que vai se agravando com mais repressão policial. Os movimentos que lutam por moradia já estão enfrentando isso. Também vamos ver o esfacelamento da política de saúde como conhecemos no SUS. Enfim, o orçamento público vai ser colocado nas mãos de setores privados, contando com a conivência da grande mídia, que recebe recursos públicos em verbas publicitárias.
Embora o número de mulheres vereadoras em BH tenha aumentado de uma para quatro, temos uma Câmara majoritariamente masculina, conservadora e machista. Como enfrentar essa situação?
É preciso ter muito diálogo com a população. Eu vejo que duas mulheres que foram eleitas em BH estão muito comprometidas com esse diálogo, são companheiras de esquerda, feministas que vão procurar todos os espaços disponíveis para construir uma relação mais próxima. Pela via institucional, o espaço vai ser reduzido. O espaço da Câmara, aliás, já é muito limitado. Então, é preciso trabalho de base mais próximo com a sociedade, seja pela via dos mandatos populares, seja por meio dos movimentos populares. É a única possibilidade que vejo, no médio prazo, para furar o cerco machista, conservador.
Ao mesmo tempo, temos que acumular forças para disputas maiores, mais significativas. Mulheres, negros, idosos, jovens, LGBT’s só terão perspectiva de poder político quando conseguirmos fazer uma reforma política de folego.
O que fazer para superar esse quadro?
É preciso que o conjunto das forças progressistas tenha serenidade para fazer uma leitura clara da realidade e construir uma unidade que nos permita o enfrentamento, irmanar para resistir e construir alguma esperança de conquistas mais à frente e de manutenção de direitos. Para tanto, a gente também precisa começar a pensar novas metodologias de trabalho popular, de formação e organização, pois não é simples o que fizeram com o povo. Muitas pessoas, só na hora em que sentirem na carne o que estão perdendo, vão despertar e, aí, alguma resposta vai começar a ser ensaiada.
Enfim, este é um período de formar uma base nova para uma nova compreensão. Serão momentos duros, difíceis, nos quais vai ser preciso muito ânimo, articulação e paciência para buscar o máximo de unidade possível, com todas as dificuldades.
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