Violência Policial

Nós, negras e negros, precisamos respirar... e vez ou outra, fugir

Decisão judicial inédita demonstra que palavras como igualdade, equidade e justiça devem se adequar ao nosso tempo

Rio de Janeiro (RJ) |
Black Lives Matter é um movimento que protesta contra a violência policial em relação à comunidade negra nos Estados Unidos
Black Lives Matter é um movimento que protesta contra a violência policial em relação à comunidade negra nos Estados Unidos - Black Lives Matter/Facebook

Em dezembro de 2014, Eric Garner parou de respirar. Suas últimas palavras: “I can’t breathe” ("Eu não consigo respirar", em português). Gravadas em vídeo, elas expuseram para o mundo a realidade de medo e desrespeito vivida por negros e negras norte-americanas e as forças repressivas do Estado. Não era a primeira e certamente não seria a última vez que a Polícia tiraria a vida de uma pessoa inocente unicamente em razão da cor de sua pele. 

De lá para cá, gritos ecoaram em todos os estados americanos e se espalharam pelo mundo sob o signo da campanha Black Lives Matter ("As Vidas Negras Importam", em português), movimento que ganhou força e se popularizou com ajuda da internet, chegando a Suprema Corte do Estado de Massachusetts. A citada corte, soberana no Estado que é casa de tantas universidades de Direito prestigiadas, como Harvard, Boston University e Northeastern, decidiu de forma inédita, no final de setembro, contra o reiterado perfilamento de negros, sobretudo jovens, feito sistematicamente pela Polícia americana, confirmando a realidade de que diversas abordagens policiais se dão única e exclusivamente em razão da cor da pele.
O Tribunal analisou a ação de policias na cidade de Boston, que revistaram centenas de pessoas, em busca do autor de um roubo a uma residência na cidade. Eles possuíam apenas a pista de “homem negro de roupa escura”, descrição esta que o próprio Tribunal refuta como não razoável e não satisfatória para individualização de um possível suspeito. Durante as rondas, algumas pessoas se recusaram a passar por revista, fugindo dos policiais, o que a Corte relembrou ser direito do cidadão não acusado diretamente de crime, isto é, optar por não calar-se ou mesmo deixar a presença de autoridades se assim preferir. 

Apesar do corre-corre, os “suspeitos” foram capturados e provou-se não terem qualquer relação com o arrombamento que deu início às buscas. Mesmo assim, a Polícia encontrou provas de materialidade de outro crime, declarando o Tribunal serem estas ilegais, dado que foram conseguidas de forma ilegal, por meio da revista por eles identificada com racista (Neste momento, quem não lembra daquele professor dizendo: “A prova ilegal é como o fruto de árvore podre, blá, blá, blá…”). Resumindo, qualquer prova incriminadora obtida de revista fundada unicamente na cor de pele - aquilo que muita gente disfarça como “cara de marginal” - será tida como ilegal, sendo excluída do processo/procedimento.
A decisão foi mais além. Expondo e analisando o histórico das abordagens policias, os juízes entenderam que o tão popular jargão do “quem não deve não teme” só pode ser uma realidade em ambientes em que os agentes do Estado não se mostram, por si só, uma fonte de desrespeito e perigo aos cidadãos, como vêm se mostrando para as populações negras. 

Assim, o caso de Massachusetts (COMMONWEALTH vs. JIMMY WARREN) marcará para sempre a história por ter, com base em preceitos constitucionais, reconhecido que negros e negras podem ter razões legítimas para evitar a polícia, diante de abordagens racistas e sistematicamente abusivas, conduzidas todos os dias contra pessoas inocentes, a partir de estereótipos e estigmas que levam à seleção dos alvos do sistema penal, que serão vistos como caso de justificada desobediência civil e de direito de resistência à violência estatal. 

Violência no Brasil 

Em contrapartida, se olharmos o Brasil a partir dos números trazidos por relatórios como o da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre os Homicídios de Jovens e Negros veremos que mais da metade (53,3%) dos 52.198 mortos por homicídios em 2011 eram jovens, dos quais 71,44% eram negros (pretos e pardos) e 93,03% do sexo masculino. O número é 3,7 vezes maior do que o de um branco em uma ação policial, escancarando um racismo institucional no país, expresso principalmente nas ações da polícia. 

Já o Relatório da Organização das Nações Unidas sobre a violência policial no Brasil, que acompanhou ações de policias, a serviço e fora de serviço, em diferentes comunidades da cidade do Rio de Janeiro, expõe a alarmante média de oitenta mortes por violência policial não justificada por mês.

Apesar de tão próximo de nós, o caso de Massachussets parece não encontrar em nossos Tribunais - e no aparato judiciário e complementar como um todo- o mesmo terreno fértil para discussão, ou mesmo qualquer tipo de respaldo, já que boa parte das denúncias de racismo e injúria racial não prosperam, sendo empurradas para tipificações mais brandas ou mesmo abandonadas por falta de interesse em sua persecução. 

Não faltarão críticas a esse tipo de decisão, sobretudo se buscarmos trazê-la para o nosso ordenamento, seja pela dificuldade em transcender algumas prisões de significado como o da igualdade, seja pela pragmática, dado os inúmeros obstáculos ao reconhecimento das nulidades, conjugados com o máximo aproveitamento da prova ilícita. Entretanto, acredito que decisões como essas abrem caminho para questionamentos jurídicos interessantes e próximos da realidade de boa parte dos cidadãos, mas sobretudo, garantem que palavras batidas, como igualdade, equidade e justiça ampliem seus sentidos para melhor se adequarem ao nosso tempo. 

Thais Pinhata é advogada criminalista e Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). 

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