O ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci foi detido pela operação Lava Jato nesta segunda-feira (26). Na semana passada, Guido Mantega, que dirigiu a mesma pasta durante os governos do PT, também teve sua prisão decretada, mas foi liberado no mesmo dia.
A prisão de Palocci foi anunciada um dia antes pelo atual ministro da Justiça do governo não eleito, Alexandre de Moraes, durante uma atividade política com o Movimento Brasil Livre (MBL) em Ribeirão Preto (SP).
Para analisar as motivações Lava Jato, seus limites e seus possíveis efeitos, o Brasil de Fato conversou com Frederico Ribeiro de Almeida, professor de ciência política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que estuda o sistema judiciário brasileiro e suas relações com a política.
Para ele, a operação age de acordo com a conjuntura política e pode trazer resultados indesejáveis para a democracia brasileira.
Confira a versão em áudio da reportagem (para baixar o arquivo, clique na seta ao lado de compartilhar):
Leia a íntegra da entrevista abaixo:
Brasil de Fato – Como você avalia a atuação da Lava Jato?
Frederico Almeida — A Lava Jato tem vários aspectos inéditos, mas, ao mesmo tempo, tem coisas típicas da forma como a Justiça criminal opera no país. O que seria mais típico? A grande autonomia e empoderamento institucional do Ministério Público voltado a questões de interesse público de maneira geral e à corrupção, em especial. Isso é uma coisa que vem desde os anos 90, estando relacionada com o desenho institucional estabelecido na Constituição - com muitas atribuições e muita autonomia - e, no caso específico da corrupção, com o surgimento de uma série de legislações específicas sobre o tema.
São mudanças institucionais ocorrendo há bastante tempo que estão culminando no que estamos vendo hoje. Mesmo quando se fala na questão dos abusos, militantes de direitos humanos e pessoas que lidam com a Justiça criminal ordinária, dos pobres, —sejam defensores de acusados, sejam pesquisadores— acusam, há muito tempo, a existência de procedimentos forçados de produção de provas, uma certa tendência do Ministério Público pela punição e, muitas vezes, uma complacência do Judiciário com as teses da acusação.
Condução coercitiva, ações sem mandado, suspeitas em torno da qualidade da prova produzida: tudo isso são coisas denunciadas há muito tempo.
O que tem de novo? No nível em que a Lava Jato opera, ou seja, uma Justiça criminal voltada para os poderosos, em geral, o discurso das garantias, da defesa, do devido devido processo legal sempre foi muito forte e eficaz. O que tem de novo são as teses jurídica sobre a produção de prova, a necessidade de se prender para investigar.
Há uma nova formulação e uma nova postura institucional do Ministério Público, dos juízes, dos tribunais em geral de defender que certos crimes e certas práticas devem ser tratadas de maneiras específicas e diferentes.
O que determinou que a Lava Jato emplacasse?
Essas teses não surgiram ontem. O Ministério Público está tentando emplacar isso faz tempo. O que acontecia é que, quando os poderosos eram outros poderosos, havia uma certa resistência dos tribunais superiores e um certo sucesso dos advogados de defesa em resistir a essa tese. Isso mudou, e tem muito a ver com o ambiente de opinião pública muito favorável à Lava Jato, que coloca qualquer tribunal em uma posição muito desconfortável em barrar a operação ou criticar seus excessos.
Nesse sentido, a operação é muito politizada: ela está focando em alguns réus, em um partido específico, ajustando o tempo de suas operações com o tempo da conjuntura política.
Eles agem quando há uma sensibilidade da opinião pública para agir. E fazem um esforço de mídia —o juiz Sergio Moro sendo premiado, as coletivas de imprensa— no sentido de jogar deliberadamente com a opinião pública para fazer emplacar suas teses fora dos tribunais.
O que representa a decisão do Tribunal Regional Federal apontado que “situações excepcionais exigem medidas excepcionais?
Ali o argumento foi levado ao extremo. Essa decisão do TRF me deixou bastante assustado. Eu nunca trabalhei com a ideia de que existe um Estado de Direito ideal e que, eventualmente, os juízes e a polícia se desviam dele.
O Estado de Direito é uma construção que os operadores do direito fazem quando o aplicam. Tanto nos abusos cometidos contra os pobres e até mesmo na questão da Lava Jato, em nenhum momento, até essa decisão, se falava em excepcionalidade da atuação. Mesmo aquilo que era excessivo e abusivo era feito em uma lógica de tradução para o direito.
O Ministério Público diz: "certos crimes tem que ser provados de maneira diferente". Eles constroem isso como tese jurídica, eles buscam fundamento legal no direito comparado. Eles tentam dar uma nova cara de direito. Quando o policial executa na favela, ele faz um boletim de ocorrência dizendo que a pessoa resistiu. Ele tem que colocar a arbitrariedade dentro de uma lógica jurídica.
O que me assusta muito na decisão é que eles estavam analisando uma conduta específica de Sérgio Moro, o vazamento dos áudios entre Lula e Dilma, que não faziam nem parte do processo, e que ele divulgou com intuito político. O que o TRF está dizendo é que aquilo não é legal, mas que essa ilegalidade é justificada pela exceção da situação. Não há sequer um esforço de colocar na lógica do Estado de Direito algo que a gente pode achar que foge da sua lógica.
Quando se dispensa esse esforço e se diz que o juiz não precisa se ater à lei e pode praticar ilegalidades, o cenário fica muito perigoso. Você tem um juiz que toma medidas com uma motivação política, que ele já deixou claro há muito tempo, que não se coloca como alguém imparcial, que se coloca como parte da acusação e, além de tudo isso, que está dispensado de se restringir à legalidade para agir. A decisão é muito perigosa e muito preocupante. O papel dos tribunais é corrigir os excessos dos juízes de primeira instância.
Você afirma que a Lava Jato age de acordo com a política. Quais elementos da conjuntura influenciaram essa nova onda de prisões?
Tem a ver com duas coisas. [Em primeiro lugar], o momento eleitoral. Embora o PT já tenha entrado na campanha muito enfraquecido, se há de fato, como eu suspeito, um objetivo de tirar o PT do jogo político definitivamente, fazer ações como essas contra Lula, Guido Mantega, Palocci às vésperas das eleições tem um sentido muito claro: demonstrar que o PT era uma grande organização criminosa. Isso afetaria, inclusive, aqueles que estão disputando eleições.
Há outra questão ligada à conjuntura, que é o fato de que, após a queda do governo Dilma, cobrou-se muito se a Lava Jato iria além do PT. O que me parece é que a Lava Jato sabe que está sob ameaça, sabe que o novo governo já a usou para o que queria e, na verdade, a considera um risco. A Lava Jato pode estar querendo acelerar a etapa PT, para começar logo uma etapa contra o novo governo. Finalizar logo a etapa contra o PT daria legitimidade, força social, para seguir na nova fase.
O problema é que ela está acelerando muito e dando muita brecha para seus críticos, entre os quais há muita gente sinceramente preocupada com nossa democracia —apesar de ter muitos envolvidos que começam a fazer discursos de que é preciso conter os abusos. Mas é difícil ela ter força tendo aberto tanto espaço para críticas, eventualmente contando com menos apoio da opinião pública quando os alvos não forem o PT e podendo ter decisões revertidas.
O ministro Gilmar Mendes, que ficou calado em outras situações de abuso, inclusive no vazamento dos áudios de Lula e Dilma, já tem falado que é preciso ter calma e conter os abusos. Já começa a surgir dentro do Supremo esse discurso.
Mas uma das marcas da Lava Jato não é focar no PT, como você mesmo colocou?
Todos os estudos sobre o recrutamento dessas carreiras, [sobre] o que eles pensam —pesquisas de opinião feitas com juízes e procuradores—, [apontam para o fato de que eles] têm uma visão muito negativa dos políticos e da política, e vêem a si próprios como as únicas pessoas capazes de promover justiça e direito no Brasil.
[Essa visão] Não é necessariamente conservadora, mas é autoritária, porque nega a importância da participação cidadã, dos partidos políticos e do sistema representativo. Ela quer promover mudanças, é progressista nesse sentido, mas é autoritária, um pouco como foi o tenentismo.
Quando se olha os discursos deles, eles anunciam esse tipo de operação como [tentativa] de subverter o sistema político. Eles identificam que a corrupção é estrutural, e a saída não é pegar casos isolados, mas fazer uma ação abrangente o suficiente para derrubar os esquemas de corrupção.
Eu acredito sinceramente que eles queiram ir atrás de outros partidos. A questão é que eles acreditam que precisam, em primeiro lugar, coibir os esquemas de corrupção que estão ativos no momento, no poder. A segunda questão é que eles dependem da opinião pública apoiando. Se eles forem procurar, nesse momento, esquemas envolvendo na época do segundo governo Fernando Henrique, isso vai se perder na opinião pública.
A seletividade tem a ver com uma ideia de etapas, o que não é menos ruim. A questão é saber se eles vão ter fôlego para cumprir a próxima etapa.
Eles são politicamente ingênuos?
Tem uma certa ingenuidade relacionada com uma confiança muito grande no seu próprio poder e em sua superioridade ética em relação aos políticos. É uma coisa muito voluntarista e muito salvacionista, no sentido de "nós somos mais puros e preparados, sabemos o que é bom".
Apesar de achar que a Lava Jato é uma engrenagem central do golpe que nós sofremos agora, eu não acho que é uma ação coordenada pelos golpistas. A Lava Jato se aproveitou de um clima de oposição política e social a um governo e avançou sobre ele. Setores de oposição a esse governo usaram a Lava Jato também para impulsionar seus próprios interesses.
É só lembrar que a maior parte dos discursos sobre o impeachment falava em corrupção, sendo que não há nenhuma denúncia de corrupção contra Dilma e o impeachment não tratava disso. Quando essa confluência de interesses se quebra, é preciso saber se, isoladamente, os interesses têm força para se manter, dos dois lados.
Mas e os casos que levantam em relação a Aécio, a questão de que Eike Batista quis entregar uma lista de propina a tucanos?
Quando eu acho que eles estão pensando além do PT, não acho que eles querem ir contra todos. Eu acho que o PSDB está muito blindando nessa história. Isso eu não tenho dúvida. Ela [a Operação Lava Jato] quer ir no PMDB.
Talvez pela própria estratégia que eles criaram de atacar quem está no poder. Pode ser decorrência da forma como eles elegem como prioridade. De qualquer forma, há esta blindagem. Pode ser ideológica, mas pode ser também pela forma como eles constroem a estratégia.
Quais são os efeitos da operação sobre o sistema político brasileiro então?
É um efeito muito ruim. Eu não tenho dúvidas que a corrupção é estrutural e parte do sistema político, mas atacar o problema de uma maneira judicial e criminal não resolve a origem do problema.
Quando eles se colocam como a solução do problema, fazendo uma grande operação e levando para o Congresso medidas de combate à corrupção que só reforçam essa lógica de Justiça e polícia, sem lidar com financiamento de campanha, com transparência de contas, com a relação entre representantes e representados, eles não atacam os problemas estruturais da corrupção.
O maior problema é apostar em uma deslegitimação do sistema político sem compreender, ou fingindo não compreender, que a política só pode se renovar pela própria política. Não vão ser eles, juristas não eleitos, que vão reestruturar o sistema político. O problema colocar tudo abaixo, sem que o próprio sistema político tenha tempo e condição de se refazer. No extremo, eles vão colocar tudo abaixo mesmo, e aí se abre espaço para os aventureiros políticos, um salvacionista messiânico, que pode ser qualquer coisa, o que pode ser terrível e deve nos preocupar muito.
Ou então, eles não vão colocar tudo abaixo, que é o mais provável, e o sistema político vai se reerguer com base nos que ficaram aí. Não necessariamente o sistema político que vai se reerguer vai ser melhor. A única coisa que a Lava Jato não está fazendo é mexer nas causas estruturais da corrupção.
Edição: Camila Rodrigues da Silva
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