Escrever um texto sobre política em um contexto como esse é escrever sobre o quê?
Vivemos a interrupção forçada de um longo período de exercício de democracia, desde as eleições de 1993. De lá pra cá, três presidentes, avanços importantes em termos sociais, econômicos e políticos. Melhor projeção internacional. Mais audácia, mais altivez, mais soberania. Emancipação. Gente pobre cursando universidade. Combate à corrupção, com direito à exposição das nossas vísceras pelo mundo. Dois eventos de impacto gigante, acompanhados de muito sofrimento e orgulho, emoções que se misturam muitas vezes. Mudanças de curto e longo prazo. Muito destas mudanças não serão sentidas tão recentemente.
Tudo destruído em questão de meses.
Retrocesso é a palavra mais adequada pra substituir o progresso que se construiu. Não há outra. Se a desesperança se ocupa dos corpos e mentes, o pacote de maldades será o prego que faltava. 54 senadores contra 54 milhões de votos, diz alguém. E a relação é precisamente essa: do que é formada a relação entre governo e população? Qual a função da democracia? Se o voto não é um biombo para esconder a corrupção, a delação se tornou um instrumento de invalidação do sistema político. O poder perpassa não mais somente as suas funções básicas, mas se ocupa do todo, do espaço, do tempo, da opção, da escolha.
Não se respeitou a escolha.
É golpe, e é precisamente golpe porque o retrocesso se ocupou de tudo. Não é mais um governo interino, mas um governo do retrocesso, o controle das forças e do instrumento de poder mobilizado para desfazer o que se alcançou nestes anos todos. O governo que se estabelece sem o aval das urnas é o governo perfeito, que não precisa da legitimidade e representação para agir. É a ditadura, disfarçada de democracia. É produto nacional, organizado com tanta capacidade, tanta destreza. É possível ser racionalmente mal, o mais preparado dos bandidos. O mais perfeito dos processos, desancando todas as vozes que o contestam.
O que fazer, afinal?
Não há muita escolha. A dissociação entre o representado e a representação por aqui contaminou as relações políticas. A luta também não produz efeito, tampouco. O espaço da contestação, do debate, da luta, é previsto e pretendido dentro de uma democracia. O estado das coisas por aqui garantiu que este espaço exista, mas o seu efeito seja nulo. E assim é, intencionalmente. O silêncio tem o mesmo efeito que o berro.
Os partidos, fruto desta (anti)representatividade, respondem com as mesmas práticas que são criticadas permanentemente. Os juízes não julgam, e quando o fazem, salvam as próprias togas. As instituições parecem funcionar, mas já estão quebradas há muito tempo, desde antes deste golpe. Se funcionam, funcionam mal. As universidades, escolas, grêmios estudantis, parecem estáticos.
O casaco de intelectual, que já foi sinônimo de autoridade, padece com a mesma sensação de desrepresentação. Hoje, o casaco é um manto de invisibilidade. Não é só Temer que se esconde. Nós também estamos nos escondendo, da função social e da combatividade que deveríamos ter. Se estivermos engajados, é preciso mais. Se não estivermos, é preciso engajar. Faltam eventos nas universidades, denunciando o golpe. Faltam greves, denunciando o desmonte da universidade pública. As escolas devem ser reocupadas, assim como os ministérios.
A universidade é o lugar primordial da política, em tempos onde a cidade não é mais. A escola também. Estes são os lugares da emancipação, do saber, da construção de conhecimento compartilhado. Deve-se lutar por suas soberanias, rechaçar os ataques das forças conservadoras. Inerente ao casaco do intelectual é a sua capacidade de intervir na realidade, reconstruir, desconstruir.
O saber é o motor do progresso. O casaco de intelectual, seu escudo. É o tecido que protege a sua existência. Silenciar, portanto, não é uma opção, mas uma escolha política por aderir às forças do regresso. Elas não deverão passar.
*Danillo Bragança é professor de Relações Internacionais da PUC Poços de Caldas e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense.
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