"Aqui vai ter que ter ao menos uma viela chamada José de Arimatea, para as minhas filhas verem e dizerem que foi seu pai que ajudou a construir este bairro. Igual aquela música, sabe? 'Tá vendo aquele prédio, moço? Eu ajudei a levantar!'", citou a letra de Cidadão, de Zé Geraldo. Natural de Recife, o pernambucano de 41 anos José de Arimatea Paiva Nunes, ou simplesmente Ari, conhece cada beco ao longo do terreno de 48 mil m² onde está localizada a Ocupação Esperança, no bairro Santa Fé, na zona industrial do município de Osasco (SP).
Ele mostra algumas fotos da primeira semana no terreno, ocupado em 23 de agosto de 2013 — e que hoje não é mais um acampamento de lonas pretas, mas já abriga, acredita Ari, quase 1 mil barracos de madeirites coloridas e até mesmo casas de alvenaria.
Entre as idas e vindas do processo de reintegração de posse na 3ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), a ocupação celebra três anos de resistência nesta terça-feira (23). O terreno é propriedade privada da empresa de cosméticos KJ Kady Jacqueline Ltda e, segundo alegam os ocupantes, estava há 30 anos ocioso e acumulando dívidas relativas a impostos.
As negociações na Justiça competem ao Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (Gaorp) do TJSP, instância criada para casos de maior complexidade e que reúne representantes do Ministério Público de São Paulo, da Defensoria Pública, do Judiciário e da Prefeitura, além de membros do governo federal e estadual. O Gaorp possui apenas função administrativa, ou seja, suas deliberações podem ou não ser acatadas pelo magistrado.
Por considerar “infrutífera a tentativa de conciliação”, no dia 1º de agosto, a juíza Ana Cristina Ribeiro Bonchristiano concedeu o prazo de 90 dias para a Polícia Militar especificar o dia de cumprimento da reintegração, “com meios para minorar o desgaste causado pela medida, possibilitando oportunidade aos moradores de realizarem a desocupação voluntária”. O prazo será contado a partir do momento em que a decisão for protocolada por um representante da propriedade no Batalhão da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMSP). "Já houve várias manifestações da Municipalidade e da Companhia de Habitação e Urbanismo no decorrer do processo, que dura três anos. Infelizmente, não se chegou a nenhum resultado prático no encontro de solução para moradia aos réus", diz trecho da decisão.
Ari acredita que a campanha das eleições municipais neste ano pode dar mais tempo às famílias. Mas ele se mantém cético quanto ao processo eleitoral. "Eleição, pra gente, não fede nem cheira. O caminho dos políticos sempre é um só. Se tem mil metros para ele percorrer, ele vai percorrer de bicicleta, moto, carro… E o povo tem que percorrer a pé". Ele afirma que, no período da ocupação, "nenhum político pôs os pés no terreno" e nem o Prefeito Jorge Lapas (PT), que concorre à reeleição neste ano, recebeu os moradores.
Para o pernambucano, a política verdadeira é o cano consertado na ocupação, cuja imagem tem tatuada na perna. "Quis eternizar no meu corpo a ocupação que me fez ser uma pessoa melhor. Nem é o fato de agora ter uma casa, mas que me proporcionou muitas coisas boas", contou.
Impasse
A Prefeitura de Osasco informou que não existem dívidas referentes ao terreno com a municipalidade. Por meio da assessoria de imprensa, afirmou que a única forma viável para garantir moradia aos ocupantes do terreno seria por meio de projeto habitacional de demanda dirigida. Por isso, “orientou o movimento para buscar financiamento junto ao Minha Casa Minha Vida Entidades, neste ou em outro terreno que viesse a ser viabilizado”.
No entanto, a modalidade do programa exige que o proprietário do terreno demonstre interesse pela venda. As negociações, junto ao Gaorp, não foram aceitas pelo proprietário. A Prefeitura afirma ainda que tem se reunido, inclusive com órgãos do Governo do Estado, para reverter a situação de reintegração ou “mesmo conseguir maior prazo enquanto se viabiliza projeto para outro terreno”. “A Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano instruiu processo administrativo para decretação de utilidade pública sobre o terreno, o que deve ser publicado nos próximos dias, para prosseguimento da formatação de projeto que necessitará aportes Federais e Estaduais”.
Uma das advogadas do processo, Irene Maestro Guimarães afirma que as reuniões junto ao Gaorp ainda continuam para se garantir que consigamos uma saída concreta neste prazo. Além das eleições, o efetivo da PM paulista nas Olimpíadas também atrasa o processo da reintegração. O movimento, diz Irene, deve cobrar a prefeitura nos próximos dias de maneira mais incisiva, dada sua "inércia" nestes três anos.
Transição
Orgulhoso, Ari conta como 25 pessoas conseguiram levar até o topo do íngreme terreno uma caixa de 10 mil litros d'água, que ainda abastece as casas de dois dos três setores da ocupação. A rede de esgoto também foi construída nos mutirões aos finais de semana e demorou quase 6 meses para chegar ao estágio em que está agora — algumas casas funcionam ainda na fossa e alguns canos tiveram problemas, mas até mesmo a "cidade grande" tem problemas sanitários, lembra o morador.
"Já construímos um bairro aqui. Coisa que a prefeitura demora anos e anos. Em três anos, fizemos muita coisa. É mais uma prova de que, quando tem envolvimento do povo, a gente constrói muita coisa", disse ele.
O início foi difícil, recorda Mateus José dos Santos, de 66 anos. Ele descreve o local em 2013 como um "capinzão", cheio de cobras, sem eletricidade nem água. Dormiam embaixo das lonas que um vento um pouco mais forte já derrubava.
Na primeira noite, vieram 25 famílias. Em uma semana, o número já ultrapassava 500. Na ocasião, a PM e a Guarda Municipal de Osasco não puderam atuar por ainda não haver reclamação da posse na Justiça. Assim, os moradores tiveram tempo hábil para transformar as lonas em casas.
Vigílias na primeira semana da ocupação. Foto: Sérgio Koei
Conhecido como o sanfoneiro da Ocupação, Seu Mateus conta que não foi com a ajuda de ninguém, "a não ser de Deus e de nós mesmos", que tudo foi se concretizando. "Fizemos a ligação de água, a Prefeitura não deu nenhum cano. Se hoje cada um tem seu banheirinho, é tudo do nosso próprio punho", disse.
Ele, do Piauí, já havia morado em São Paulo outras inúmeras vezes. Da última vez, chegou um mês antes da ocupação, depois do falecimento de sua esposa. Veio para São Paulo para não ficar tão sozinho. Os filhos até tentaram morar com o pai no Nordeste, mas não se acostumaram a morar fora da cidade. Lá, Mateus trabalhava em uma fazenda, onde cuidava das cabeças de gado.
Organização
Antes de morar na ocupação com a esposa Lívia Clea Alexandre da Silva, 37 anos, e as filhas Maria Eduarda e Maria Fernanda, a família de Ari pagava aluguel. Participaram de uma ocupação antes, a Bandeirantes, mas sem sucesso. Os moradores foram despejados e ele, que era operador de empilhadeira, foi demitido de sua empresa por estar muito envolvido no processo da ocupação.
Hoje, ele ainda desempregado, ganha seu sustento dentro da ocupação Esperança, no Bar Pirokas. "O nome do bar não vem disso que vocês tão pensando, não… É que as pessoas vêm aqui despirocar mesmo", brinca. O local é point agitado aos finais de semana para quem quer tomar uma cerveja e dançar forró, garante os moradores.
Lívia conta que tudo mudou nestes três anos. "Com o dinheiro que a gente gastava no aluguel, conseguimos ter uma alimentação melhor, ter um melhor calçado, podemos levar elas no parque… coisa que criança gosta. lá fora o que a gente não poderia comprar, aqui temos uma condição melhor", disse.
O casal Lívia e Ari com a filha, Maria Fernanda. Foto: Norma Odara/Brasil de Fato
Segundo ela, a vida é bastante comunitária, o que diferencia de outros lugares onde já viveu. Ela, por exemplo, participa de mutirões de limpeza, das atividades semanais da mulheres e ajuda pontualmente a organizar um ou outro evento. Já Ari é um dos oito coordenadores da Associação de Moradores da Ocupação Esperança, que são divididos nos grupos de Infraestrutura, Financeiro, Saúde e Esporte e Lazer.
Os coordenadores tentam solucionar problemas cotidianos que aparecem da grande diversidade entre os moradores. Na ocupação, uma canção gospel evangélica e funk são quase um remix só. A proximidade das diferenças, claro, traz conflitos que mensalmente também são debatidos em assembleias.
A ocupação também tem duas igrejas pentecostais. Já os partidos políticos, se quiserem vir passar um dia e conversar com os moradores, à vontade, explica Ari. Mas, para além do Movimento Luta Popular (com muitos militantes ligados ao Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado - PSTU), que ajuda na negociação com a Prefeitura e na organização de assembleias e outras atividades, as siglas não têm espaço para atuar no território.
Festa
Músico autodidata, Mateus alimentava o desejo de tocar sanfona sempre que ia às festas, quando menino. "Mas meu pai não deixava. Fui comprar minha primeira sanfona com 16 anos e eu era ruim, ruim, ruim. Mas quando meu pai viu, aí ele já gostou", contou. Tocando Luiz Gonzaga, ele deu uma palinha do que vai acontecer no próximo sábado (27), na festa de três anos da Ocupação Esperança.
Lívia vai participar com as mulheres em uma apresentação teatral. A aposentada Josefa Gonçalves Leite, de 62 anos, conta que o movimento lhe inspirou tanto que ela compôs uma música. "Vocês querem ouvir? Chama 'Vamos Dizer, Vamos falar'", pergunta. Ela, que morava em Pirituba antes e chegou em 2014 em Osasco, conta que está ensaiando todas as quintas. Seu Mateus foi escalado para tocar junto.
Para ele, os momentos mais marcantes da ocupação são os de integração da comunidade. "As festas de aniversário, quando a ocupação completa ano, sempre tem um bolo, um churrasco… Só alegria. Se tem alguém que não gosta de mim, vou te dizer que nem sei o porquê. Eu gosto é de todo mundo", disse.
O sonho de Mateus é ganhar o terreno para ter onde morar definitivamente. "Eu não sairia daqui era nunca". Animado, ele promete tocar numa festa ainda maior: a de comemoração das famílias, quando puderem fincar suas vidas permanentemente do terreno.
Edição: ---