Depois de uma série de denúncias informais sobre remoções forçadas e truculência do Estado contra pessoas em situação de rua no Rio de Janeiro, representantes do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh), frente da Defensoria Pública Estadual, criaram o grupo Ronda Direitos Humanos (Ronda DH) para colher formalmente o depoimento dessa população. O resultado da pesquisa é que houve um aumento de 60% nas queixas de violações contra essas pessoas entre março e julho de 2016.
O Ronda DH, que tem apoio da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Câmara Municipal e do Movimento Nacional de População de Rua, tem percorrido as ruas do Rio para apurar o abuso das autoridades municipais, coletando respostas diretas sobre atos de violência e os agentes responsáveis.
Após 50 relatos reunidos, o grupo concluiu que vem sendo realizado um processo de "higienização" da cidade, em virtude do turismo relacionado às Olimpíadas.
É o que afirma a defensora pública Carla Beatriz Nunes Maia, membro da Ronda DH e do Nudedh. "No Rio de Janeiro, é comum ocorrer esse tipo de política pública de higienização em decorrência de megaeventos. Já ocorreu na Rio+20, na Copa e agora nas Olimpíadas. Na penúltima ronda, podemos constatar a retirada de parte dos moradores dos locais estratégicos dos Jogos Olímpicos, que são onde eles tradicionalmente permaneciam, como os Arcos da Lapa, o Largo da Carioca, o Museu de Arte Moderna e o Aeroporto Santos Dumont. Muitos foram levados, não se sabe exatamente para onde. Por isso, na hora de dormir, eles não ficam mais nesses lugares, estão buscando lugares alternativos para evitar essa violência", afirmou.
De acordo com os dados de 50 questionários, a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop) foi apontada em 49% dos depoimentos como a responsável pelas violações cometidas contra a população em situação de rua, sendo 24% delas por agentes da Operação Choque de Ordem. A Guarda Municipal foi apontada em 17% dos dados e a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), em 14%.
Em um dos depoimentos aos quais o Brasil de Fato teve acesso, a pessoa em situação de rua descreveu que foi abordada e levada para a 5ª Delegacia de Polícia (DP), onde foi tratada com ofensas.
Ela também relatou já ter passado por situações de acolhimento compulsório pelo Choque de Ordem, que levou todos seus pertences pessoais. Outra denúncia revela agressões físicas por parte dos funcionários da DP da Cruz Vermelha, após a pessoa ter sido levada para o local por um grupo da Operação Lapa Presente.
Em outro questionário, o entrevistado denunciou ter sido levado compulsoriamente pelo Seop ao Aterro do Flamengo, enquanto lavava seu casaco no Campo de Santana. "Chegando lá, tacaram spray de pimenta dentro de suas calças e, depois, o liberaram". A maioria dos relatos revela remoções forçadas e apreensão de documentos, colchões e outros pertences pessoais pelas autoridades públicas.
Alternativa
Segundo Maia, as pessoas em situação de rua se recusavam a prestar depoimento oficial, com receio de sofrerem retaliações, e o questionário representa uma maior segurança para as vítimas.
"Nós fizemos perguntas objetivas sobre eventuais violações. Eles assinaram e nós fotografamos os documentos. Garantimos que apenas divulgaríamos quando conseguíssemos um número mínimo de denúncias, para evitar as retaliações. A partir do momento em que tivemos esse número, que serve como um véu de proteção, eu procurei pessoalmente a chefia da SMDS, no dia 19 de julho, e pedi uma reunião de emergência, junto à Seop e à Guarda Municipal, mas ela não aconteceu", relatou a defensora.
Uma audiência pública instalada pela Defensoria no dia 3 de agosto recebeu a população em situação de rua e reuniu diversas denúncias contra os órgãos do Estado. Filmada e transmitida ao vivo, a audiência não contou com a presença de representantes da Seop e SMDS.
"É importante destacar que a Defensoria Pública é o único órgão que recebe mesmo os moradores de rua, não o faz somente por obrigação", diz Maia, referindo-se também ao acordo que possibilita que pessoas nessa situação passem a noite no prédio da Defensoria Pública do Estado, na Avenida Marechal Câmara, centro do Rio. Cerca de 70 pessoas pernoitam no local diariamente, ocupando a calçada entre 18h e 6h.
A defensora destaca que a Ronda DH ainda está estudando a melhor estratégia a ser tomada. "Agora que temos um procedimento externo aberto com as denúncias e a expedição de ofício às autoridades, podemos cobrar explicações, dependendo do caso. É muito importante dar visibilidade para essas pessoas esquecidas", completa.
Contraponto
Em nota, a Seop e a Guarda Municipal afirmaram atuar em apoio às ações da SMDS no acolhimento de pessoas em situação de rua quando elas são encaminhadas para abrigos, além de ações para desobstrução das vias. "Em ambos os casos, os agentes são orientados a agir de forma respeitosa com os cidadãos, sem qualquer tipo de excesso", diz o texto.
Já a assessoria de imprensa da SMDS, também em nota, afirmou que a secretaria não recebeu qualquer denúncia da Defensoria Pública sobre truculência no acolhimento de moradores em situação de rua, nem "pedidos oficiais de reunião".
"A SMDS trabalha realizando, diariamente, o acolhimento voluntário de pessoas em situação de rua na cidade. Vale ressaltar que, nos últimos anos, a cidade do Rio de Janeiro foi palco de grandes eventos, como a Jornada Mundial da Juventude e a Copa do Mundo, onde a mesma narrativa de violações de direitos foi construída. Contudo, em nenhum dos eventos, assim como agora com as Olimpíadas, houve denúncia por parte de qualquer órgão", justificou.
A secretaria esclareceu também que "no dia 12 de abril de 2016, publicou a Resolução 64, regulamentando o protocolo de abordagem a pessoas em situação de rua. Este documento foi elaborado em parceria com a Defensoria Pública do Estado, o Ministério Público Estadual, a Câmara de Vereadores e a sociedade civil".
Edição: Camila Rodrigues da Silva
Edição: ---