Primeiramente, não venho falar em nome nem da direita nem da esquerda, mas em prol da luta do meu povo, que sempre estará em primeiro plano na minha ideologia política. Sou mulher preta, militante do movimento negro e vivencio na pele todos os dias o que é ser negra/o no Brasil.
No início deste ano, denunciamos ao MPF cerca de 40 casos de fraudes nas autodeclarações do vestibular da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Esse número é bem maior do que possamos imaginar, já que aqui, como a maioria das universidades brasileiras, não há mecanismos de fiscalização. Lutar contra as fraudes nas cotas raciais no Brasil tem sido o mesmo que lutar contra o próprio racismo institucional e suas diversas facetas. Ao invés das instituições fiscalizarem o cumprimento da lei e protegerem os direitos reservados à população negra e indígena, criam-se diversos argumentos para deslegitimar a lei de cotas e não se criminalizar os responsáveis pelos atos ilícitos.
Ao colocar um pouco de luz na história que a educação eurocentrada insiste em esconder da sociedade brasileira, é possível notar que não é de hoje que o movimento social negro luta pelo direito à educação dos afro-brasileiros! Sinto informar que “não é benesse de nenhum governo”, mas sim uma conquista da luta histórica de um povo que construiu esse país debaixo de chibatas e constantes violações de seus direitos por longos 400 anos. Enquanto lutávamos pela liberdade, a aristocracia brasileira concentrava as riquezas e determinava a posição de cada sujeito “em seu devido lugar” na estrutura social do país.
Porém, só em 2012, depois de imensuráveis debates que trouxeram um desconforto nacional na branquitude, a Lei de cotas foi aprovada por unanimidade no STF, com pontos que já haviam sido alertados pelo movimento negro desde 1998. Um deles foi sobre a possibilidade de fraudes nas ditas autodeclarações, mas a “brancaiada” que lá impera não iria deixar de manter tais “brechas” afim de garantir seu quinhão.
A busca por políticas públicas que melhorem as condições de vida da população negra vem sempre acompanhada de muita luta para garantirmos tais direitos. Isso porque as barreiras são impostas e realocadas ao passo que avançamos em direção a estes direitos. Por isso, a importância da participação ativa dos novos sujeitos de direitos, a juventude de negros e negras, que vem contribuindo na luta do movimento negro contemporâneo e permitindo uma oxigenação no movimento em prol das antigas e atuais demandas para toda a população negra.
O despertar da manhã de 04/08 aconteceu com a leitura de um texto no mínimo “oportunista” publicado pelo portal onlineJornalistas Livres, que também fez escola na Folha de S. Paulo. Intitulado “APARTHEID BRASILEIRO: Governo Temer adota comitê de pureza racial”, a autora compara a verificação da autodeclaração pela análise dos fenótipos com a“Reedição constrangedora de práticas nazistas e do regime racista do Apartheid da África do Sul…”. Ela ainda credita ao“governo golpista de Michel Temer” a adoção da medida através da Orientação Normativa nº 3, de 1º de agosto de 2016,que se trata de pleito do movimento negro há anos, como medida necessária e urgente para a coibição das fraudes nos concursos públicos, assim como, nos vestibulares das universidades públicas e privadas. Como se não bastasse, ela conclui o subtítulo da matéria dizendo ser este um “avanço definitivamente do sinal, atropelando os direitos humanos da comunidade afrodescendente”.
No primeiro momento, a indignação vem devido ao texto ser de uma jornalista que aparentemente se coloca como “aliada” das lutas dos movimentos sociais, de direitos humanos e pela Democracia do Estado Brasileiro. O que vimos, porém, logo em seguida, é só mais um pouco da tradicional posição literária, hierárquica, elitista, branca e racista, ao qual tanto questionamos da esquerda branca brasileira. Quando é preciso, para garantir seus privilégios e seus interesses, são capazes de tudo, inclusive cortar “a carne mais barata do mercado”, ou seja, “a carne negra”, como diz Elza Soares. A autora, por vaidade e na tentativa de dar repercussão ao texto, foi infeliz em todas as suas colocações e argumentos. A infelicidade maior, contudo, residiu no fato de não ouvir as críticas do próprio movimento negro.
Antes de decidir escrever esse texto, tendo em vista que não sou escritora, muito menos jornalista, fui até a página pessoal da autora e pedi um “mea culpa” para que ela refletisse. Queria que assumisse o erro tremendo e que se retratasse perante o movimento negro, pois muitas de nós, militantes do movimento, estávamos nos sentindo lesados/as pelo ‘“fogo amigo”. Nos sentimos violados/as quando a jornalista direcionou seus canhões para as mesmas vítimas do genocídio do Estado Brasileiro, que luta co-ti-dia-na-men-te pra conter as várias formas que o Estado e a sociedade têm para nos matar como povo preto, em especial os jovens negros.
Como se não bastasse a invisibilidade dos nossos corpos negros e o silenciamento continuo de nossas vozes, as manifestações escritas que eu e tantas outros/as militantes do movimento negro fizemos na página pessoal e no portal dos jornalistas livres, não foram respondidas. Quem sabe, sequer foram lidas. No alto de seus privilégios, está uma jornalista branca que não ouviu o movimento social ao qual se propõem “representar” em texto presunçoso e longe da realidade das lutas político e social que vivemos, parecendo até não haver jornalistas negros/as para orientar ou responder às demandas de cunho racial do canal de notícias.
Que fique bem escuro que é justamente por este e tantos outros motivos que o Movimento Negro por meio dos coletivos negros universitários vem lutando contras as fraudes e pela garantia da Lei de Cotas Raciais. Quem melhor do que nós pra falar de nós ou saber o que queremos e precisamos? Garantir o direito ao acesso ao ensino superior garante que tenhamos mais jornalistas, veículos de comunicação com editoriais pretos e profissionais liberais no mercado de trabalho que nos representem. As fraudes têm reduzido drasticamente a possibilidade de acesso da população negra nas universidades e nos serviços públicos. Nas salas de aula e nos cargos de chefia nas empresas, ainda procuramos negros e negras com dificuldade. Quando nos identificamos, conseguimos contar nos dedos de uma só mão quantas/os somos.
Parafraseando a jornalista, eu me direciono aqui à esquerda branca brasileira: “é vergonhoso” sim! Em pleno século XXI, depois de resistirmos a um terrível período escravocrata, conquistarmos uma falsa abolição, lutarmos em duas ditaduras, sobrevivermos a governos de direita, ainda termos que lidar com uma esquerda que usa as pautas dos movimentos sociais como massa de manobra para conquistar aquilo que deseja. A matéria fala de “Apartheid”, “Tribunal Racial” e “Pureza Racial”, todos termos usados em tempos atuais nos argumentos das ultrapassadas teorias racistas para a negação da identidade e diluição dos direitos da população menos favorecida.
Sobre o “Apartheid”, o dia 04 de Agosto marcou os 25 anos da visita ao Brasil do líder africano Nelson Mandela. Em 1990, Mandela foi libertado depois de 27 anos na prisão por combater o racismo e o regime separatista do “Apartheid” na África do Sul. Recém-eleito presidente do Congresso Nacional Africano (CNA), ele realizou viagens internacionais, incluindo em seu roteiro alguns estados brasileiros, como o Espírito Santo. O Apartheid, política instituída na África do Sul, nos Estados Unidos da América e entre outros países, ganhou destaque no mundo através da luta de Nelson Mandela, quem viveu uma vida inteira de cárcere para ver seu povo livre de tal discriminação. Comparar as bancas avaliadoras com o “Apartheid” e práticas “Nazistas” é tão perverso quanto desrespeitoso com todos aqueles que pereceram nesses períodos horrendos da história.
É uma pena que a matéria em foco não veio a denunciar o verdadeiro “Apartheid Brasileiro”, quando formalmente e/ou por meio de normas e procedimentos, ocupamos lugares pré estabelecidos socialmente, como cadeias, manicômios, viadutos, empregos subalternizados, ruas, morros e favelas. Como esquecer o lugar da população preta, pobre e periférica nestas Olimpíadas no Rio de Janeiro? Os principais critérios utilizados para distinguir em que lugares devemos ou não estar são as características físicas e estéticas, ou seja, os fenótipos negróides. Quando é para sofrer racismo ou ser discriminado por injúrias raciais, nossos traços não são difíceis de serem identificados. Acredito ser este um critério que deva ser também utilizado para garantir os nossos direitos.
Quanto ao “Tribunal Racial”, este já está instituído nas relações raciais desde o momento que as populações negra e indígena são julgadas sumariamente como suspeitas e culpadas antes mesmo do devido processo legal. Afinal de contas, o que são as instâncias jurídicas desde país? Quando na tríplice jurídica o sujeito negro ocupa quase sempre o lugar de réu? E para não dizer que não falei da “pureza racial”, sabemos muito bem que aqui no país da “Democracia Racial”, onde todos somos “miscigenados” graças ao constante estupro das mulheres e dos homens negros e da política de Estado de “branqueamento”, uma gota de sangue negro não o faz ser abordado na rua ou ser morto pela polícia. Não é motivo sequer para sofrer racismo em razão de sua cor. Portanto, não me venha falar que “todos somos iguais” pois no dia a dia não é essa a realidade dos pretos e pretas. Quanto mais fenótipos negroides e melaninado for, mais o racismo recai sobre você.
Este tema tem que ser tratado com seriedade e responsabilidade pois a necessidade de mecanismos de fiscalização e verificação da autodeclaração nos concursos públicos e nas universidades se dá devido às artimanhas do próprio racismo à brasileira, que primeiro nega a identidade negra aos afro-brasileiros, inferioriza-os, desqualifica e depois tira-lhes os direitos conquistados com tanta luta. Te pergunto aqui, será que se eu disser que sou filha ou neta de descendentes europeus, terei assim o direito aos mesmos privilégios de ser branca perante a sociedade brasileira? A respostá é taxativa: Não! A branquitude, seja de direita ou de esquerda, para manter seus privilégios, ainda não admite que pretos e pretas possam sentar nos mesmos bancos das universidades, fazer os mesmos cursos, sejam eles os mais ou menos concorridos, dar aulas nas faculdades brasileiras, ocupar os mesmos cargos políticos ou de gestão, ou até dar ordens numa empresa.
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