Entre os que se abrigavam da chuva em uma marquise no Centro do Rio de Janeiro, estava Eneida Freire, mulher que dedica sua vida, desde os 14 anos, ao atletismo. Ela, assim como as cerca de 50 pessoas que participaram da Marcha dos Atletas pelo Direito ao Esporte e à Cidade, na noite dessa terça-feira (2), estavam encharcados. Nem por isso deixaram de caminhar do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), no Largo de São Francisco, costurando ruas até chegarem às escadarias da Câmara dos Vereadores, na Cinelândia, no Centro do Rio. Questionada sobre o que a cidade tem de olímpica, Edeida é direta: “Nada! Atletas levaram 10 anos para conseguir índices olímpicos. Mas não foram premiados, foram punidos. Conheço pelo menos cinco que tinham condição de estar nos jogos porque foram obrigados a deixaram de onde treinar”, conta Eneida sem conter o choro.
Com apitos e faixas, os manifestantes da atividade, que integra a Jornada de Lutas Rio 2016 — Os Jogos da Exclusão, chamaram atenção para violações de direitos com gritos como “não vai ter tocha” e “olimpíada”, denunciando a “privatização da cidade” e o o fato de “equipamentos públicos esportivos estarem fechados ou sucateados”. O estádio a que Eneida se refere, por exemplo, não funciona desde a Copa das Confederações, em 2013. Por lá, passavam cerca de 800 pessoas todos os dias, entre crianças de programas sociais, atletas olímpicos, paralímpicos e amadores, que dividiam em oito raias. Somente Edneida treinava cerca de 80 crianças. “Ele era o único equipamento social e público e, nesse momento, poderia ajudar nas olimpíadas. Mas estamos na rua. Sem o Estádio, as equipes internacionais estão treinando em outros estados, como São Paulo e Minas Gerais”, relata ela, que diz se sentir uma “atleta sem-teto”.
“Esses meninos amam o atletismo. Sabe qual é o sonho deles? É o mesmo da maioria dos atletas no Brasil. Serem atletas olímpicos! Mas essa situação de abandno do esporte prejudica. O estádio era a primeira ou mesmo a última porta de entrada para muitas crianças. Agora, elas têm apenas praças e parques para treinarem, onde faltam até banheiros. É mais complicado treinar na rua. Você lança um dardo e ele fica preso na árvore. Certa vez um peso foi arremessado e entrou num buraco com lama, nunca mais saiu de lá”, detalha a educadora, que já foi campeã brasileira de pentatlo, modalidade desportiva composta por cinco provas, no próprio Célio de Barros.
Atualmente, o local serve de depósito de material e estacionamento. O Estádio Olímpico poderia ser uma opção para o atletismo, mas também teve que ser fechado sob o risco de desabar. Nenhuma empresa foi responsabilizada pelo erro na estrutura. Questionada sobre o que o Rio teria de olímpico, Edeida é direta: “Nada! Atletas que passaram pela minha mão levaram 10 anos para conseguir índices olímpicos. Mas não foram premiados por isso, foram punidos. Conheço pelo menos cinco que tinham condição de estar nos jogos, mas não conseguiram índices olímpicos porque deixaram de onde treinar”, reclama.
Esporte ou mercado?
Atletas de outras modalidades também participaram da marcha. Acompanhados de militantes de organizações e movimentos sociais, destacaram que na “cidade olímpica” nem mesmo o esporte teve vez. Assim o Célio de Barros, o Parque Aquático Júlio Delamare ficou fora dos jogos. Protestos impediram sua demolição, porém o equipamento permanece fechado e vai se deteriorando aos poucos. Ambos fazem parte do Complexo Esportivo do Maracanã. Palco da abertura e do encerramento, o “templo mundial do futebol” foi entregue em às empresas Odebrecht, IMX e AEG. A reforma do estádio custou R$1,34 bilhões aos cofres públicos e o equipamento foi entregue à iniciativa privada por R$ 181 milhões, a serem pagos em 30 anos.
Durante a preparação para as olimpíadas, o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas no Rio de Janeiro recebeu diversas denúncias sobre a perda de espaços de treinamento e competição, algo que foi registrado no Dossiê “Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro. “Essa é uma grande contradição. Atletas olímpicos tiveram que deixa o país, como, por exemplo, o Cesar Castro, que treinava no Julio Delamare. Mas para as olimpíadas anteriores, ele treinou justo nesse parque aquático. O que está realmente em jogo não é o esporte, não é a ideia de melhorar a vida das pessoas por meio da prática esportiva. É o lucro!”, critica Renato Consentino, que integra o Comitê.
Marcelo Deodoro, treinador de boxe olímpico, também acredita que no pódio das olimpíadas, o primeiro lugar vai para o “dinheiro”. “É uma vergonha! Fico contente pelo Rio ter sido escolhido. Nós, atletas, vamos torcer por quem vai competir. Mas não fico feliz com as famílias removidas de suas casas, com a situação dos atletas que ficaram sem financiamento e com as obras superfaturadas. O estado está em crise. Não tem verba para o esporte, para os professores e para a saúde”, afirma o integrante da Federação de Boxe do Estado do Rio de Janeiro. Aos 46 anos, 32 anos dedicados ao esporte, Marcelo se diz indignado com constrangimentos vividos por atletas da “cidade olímpica”. “Recentemente, tivemos que ficar pedindo esmola para levar um ônibus para uma competição. Levamos um dia e meio de viagem. Perdemos chances de voltar com troféus por conta de situações como essa”, avalia.
Renato caracteriza a situação do Rio, às vésperas dos Jogos, como caótica. A cidade fecha neste ano um ciclo de quase 10 anos recebendo megaeventos esportivos. Começou com os Jogos Panamericanos, em 2007, passando pela Copa das Confederações, em 2013, a Copa do Mundo, em 2014, e, agora, as Olimpíadas. No caso do Parque Olímpico, construído para as olimpíadas, há estruturas que serão desmontadas depois do megaevento. Outras poderão passar para o controle de iniciativas privadas, deixando de serem espaços para a prática de esportes. “Acabarão servindo para divulgar marcas de grandes empresas”, analisa Renato.
Águas olímpicas?
A volta do Estádio de Remo da Lagoa como local de prática esportiva também esteve entre as reivindicações na marcha. Atletas veteranos, que lutam pela recuperação do espaço desde os anos 1990, tiveram esperança de que isso ocorresse com o anúncio dos Jogos, em 2009. “A gente esperava todo um trabalho de base, de reestruturação do esporte. O Brasil não tem nenhum centro olímpico de treinamento de remo. O Estádio da Lagoa era o local ideal para isso, mas a seleção brasileira de remo não tem seu centro de treinamento. É uma grande hipocrisia falar em ‘cidade olímpica’, protesta Alessandro Zelesco, de 59 anos, que já chegou a competir pelo Flamengo e pelo Vasco.
Ele destaca, ainda, que se trata de mais uma área pública que não é voltada para o esporte. “Não tem muito espaço para o remo no estádio de remo. Lá 80% da área não está sendo usada para o esporte. Então, não se pode mais atender a garotada da Rocinha, do Vidigal, de outras comunidades. É um empreendimento privado ligado à família Marinho [Roberto, das organizações Globo]. Tem espaço para shopping, restaurante, mas não é um local que prioriza o esporte”, reclama Alessandro.
Já na Baía de Guanabara, a Marina da Glória também foi privatizada em um processo em que se esqueceu de sua finalidade esportiva. Nem mesmo a rampa pública de acesso à água foi aberta ao público pela dona do espaço, a BR Marinas. Além disso, uma das promessas em meio aos Jogos era a de atingir 80% da despoluição da Baía, algo esperado por décadas. No entanto, suas águas seguem recebendo esgoto e lixo, sendo impactadas por empreendimento do ramo do petróleo, dentre outros.
Aercio de Oliveira, coordenador do programa da FASE no Rio de Janeiro, destaca que essa realidade tem a ver com a falta de investimento em saneamento ambiental. Os casos da Lagoa e da Baía da Guanabara dão dimensão do problema, porém existem espaços, como favelas e periferias, que ficam excluídos nesse contexto. “Boa parte da bacia hidrográfica da Baixada Fluminense, por exemplo, desagua na Baía de Guanabara. Para enfrentar seriamente o problema da despoluição de suas águas, não basta simplesmente recolher resíduos sólidos [das superfícies]. Tem que ter tratamento de fato. Porém, o que temos na Baixada são municípios com indicadores de no máximo 5% de esgoto tratado. Essa é uma questão muito séria! Muitos acreditavam que a despoluição das águas iria se efetivar com as olimpíadas. Mas foi conversa fiada”, aponta.
A Marcha dos Atletas foi também um convite para que a população vá protestar na próxima sexta-feira (5), a partir das 14h, na praça Sans Peña, Tijuca, zona norte da cidade. “Vamos estar nas ruas no dia da abertura das Olimpíadas para contrapor o discurso de que os jogos trazem ‘desenvolvimento’ e ‘redução da desigualdade social’. Trouxe violações, mercantilizou a cidade. Não é à toa que estamos chamando esse megaevento de Jogos da Exclusão”, concluiu Renato.
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