Vai atirar? Ajoelhou-se, abriu os braços às laterais do corpo e, homem-cruz no asfalto de quase meio-dia, gritou para os cinco homens fardados a sua frente: - vai atirar? Uma, duas, três, ancestrais vezes: - vai atirar num trabalhador? Camisa aberta, a mão esquerda batia contra o peito exposto à mira. - Atira! - Vai, atira num trabalhador! A cada batida, um exército de tambores silenciosos. A cada batida, - atira!, - atira!, um vulto de Carajás. Os policiais recuaram as armas. Por trás do Sem Terra ajoelhado, outros se enfileiravam. Braços dados constrangem metralhadoras. Eu vi. Àquela hora, bombas de gás lacrimogêneo já haviam desafiado as nuvens. Policiais militares as lançaram ao céu - mas era como se disparassem à história - e elas aterrissaram lágrimas nos olhos das duas centenas de militantes que, naquela manhã, trancaram a rodovia em protesto contra o golpe atravessado pelo país. Faltou ar. Faltou ar. Fogo no ar. - Não consigo andar. - Não consigo enxergar. - Não consigo respirar. Eu ouvi. No nó do desespero, rente à fumaça dos pneus queimados, uma senhora, 60, 65 anos, trabalhadora rural, cambaleou. Pendeu. Suportamo-nos. Ela se apoiou em meu braço esquerdo, eu em sua dor. - No calor da guerra, não se chora no olhar, menino. Antes se chora no suor. Evapora mais tarde - ela não disse, mas disse, eu senti. - Atira! - Atira! Os policiais se afastaram, voltaram às suas viaturas. - Atira, porra! - Vai ter coragem de atirar num trabalhador? Não demorou. Trá. Lágrimas encapsuladas revoam como urubus, mas se chocam ao rés como um açoite. Trá. O Sem Terra ajoelhado se ergueu, ainda confrontava o peito nu à mão esquerda. Um cortejo de alfaias nervosas. Trá. Corremos. De lá saímos e lá ficamos. Trá. Enquanto eu corria, juro, avistei uma bandeira vermelha. Ela tremia. E fez da estrada a tarde que, então, também se levantava.
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