Professora de sociologia da Rede Pública de ensino do Paraná, a jovem Gabriela Viola ficou temporariamente afastada do colégio em que trabalhava após a repercussão nacional de uma paródia feita por seus alunos. No vídeo, estudantes do primeiro ano do ensino médio do Colégio Estadual Profª Maria Gai Grendel, do bairro Caximba, região sul de Curitiba, transformaram o funk “baile de favela” em uma música sobre as ideias de Karl Marx. O estilo musical e o conteúdo da paródia acederam o debate acerca dos riscos do movimento “Escola Sem Partido”.
“A partir do momento em que a gente fez a junção do funk com Marx, a gente transformou o funk em uma forma de disseminação de conhecimento”, explica a professora, em entrevista ao Brasil de Fato e ao Mídia Ninja. Ela conta como o episódio afetou sua vida pessoal e profissional, sobre suas inspirações para o ensino crítico, e opina sobre a relação do caso com o cenário político do Brasil.
BdF e Ninja- Em pouco tempo, o vídeo com a paródia “Karl Marx é baile de favela”, feita pelos seus alunos, viralizou nas redes sociais e seu caso ganhou repercussão nacional. Você poderia explicar melhor o que aconteceu?
Gabriela Viola – O vídeo foi um trabalho realizado em sala com os alunos do primeiro ano do ensino médio. Dentro das diretrizes curriculares, é preciso estudar os clássicos da sociologia como Marx, Weber e Durkheim. Buscando uma aproximação com a realidade dos alunos, resolvi trabalhar a paródia, que foi divulgada na internet como uma forma de mediação, uma forma de incentivo aos alunos. Como já tinha sido divulgada a paródia da outra sala [com a música Aquele 1%, do Wesley Safadão], os alunos queriam ver também o trabalho deles. Vivemos numa sociedade tecnológica, então os alunos têm esse contato direto com os meios de divulgação de informação.
Eu postei essa paródia no domingo à noite e, na segunda-feira, várias páginas, que têm um pensamento político ideológico diferente do autor, começaram os ataques. Nada mais foram do que ataques políticos ideológicos. Você percebe que esses comentários não tiveram nenhum tipo de fundamentação em relação ao teórico proposto. Muito menos foram comentários voltados para a questão da educação. Esses comentários foram todos vestidos pelo discurso do ódio, propagaram ódio em relação a mim, em relação aos estudantes que participaram dessa aula e desse projeto.
Mas ao mesmo tempo, os estudantes não deixaram barato e organizaram um protesto na escola e a campanha “VoltaGabi nas redes sociais. Pode comentar?
A partir do momento em que eu fiquei em casa por conta da repercussão desse vídeo na internet, eu não entrei mais em contato com os alunos por meio de rede social nenhuma. Me contaram que eles começaram a se mobilizar na escola, porque viram esse discurso de ódio e entenderam como uma injustiça, tanto em relação ao trabalho que fizerem, em relação a eles como estudantes e em relação a mim. Quem conhece a nossa realidade escolar somos nós. Sou eu que estou todos os dias em sala de aula e são esses estudantes que também estão em sala de aula. Então, repercutiu porque eles se sentiram injustiçados.
Para entendermos melhor o caso e também o próprio contexto de ensino e aprendizagem na escola, você pode contar um pouco mais sobre você e sua formação?
Eu cresci no Tatuquara [região Sul de Curitiba], onde fica localizado esse colégio [Colégio Estadual Profª Mara Gai Grendel]. Eu passei a minha infância, minha adolescência, minha juventude ali, e hoje eu atuo enquanto educadora nesse mesmo ambiente. Então, dessa realidade escolar e da realidade social, eu compreendo muito bem, porque eu faço parte dela. Eu tive contato com a educação por meio de movimentos populares voltados à educação. Estudei, ingressei na universidade por meio do Prouni. Fui bolsista e, dentro da universidade, sempre defendi que ela deve se pintar de povo. A gente precisa de mais pessoas como eu dentro da universidade, que vão ser atuantes dentro da comunidade posteriormente.
Vivemos em um mundo dinamizado, com muitas interações e rapidez na troca de informações, que deve afetar também o ambiente escolar. Como é a sala de aula nesse século XXI e, a partir disso, por que a escolha de trabalhar o funk como instrumento pedagógico?
Quando você entra em sala de aula você não está dentro de um quadrado. Os alunos têm conhecimento do mundo. É só ele fazer uma busca na internet que ele pode buscar qualquer pessoa em qualquer outro lugar do mundo. O problema é que você entra numa sala de aula com pessoas com a mente do século XXI e encontra uma escola arcaica, uma escola tradicional, uma escola com os moldes do século XIX. Esse processo contraditório reflete no ensino.
A partir dessa compreensão é que vem a ideia de trazer a abordagem por meio da realidade social na qual o aluno está inserido. E é aí que vem a proposta do uso do funk. Nós não escutamos música clássica, nós escutamos outros estilos musicais. O papel da sociologia é trazer a ressignificação daquilo que já é posto. Qual foi o objetivo desse trabalho? A gente desconstruiu aquilo que foi construído. A gente construiu o novo em cima disso. A gente pegou uma música de funk, um estilo musical que é marginalizado e transformamos em teoria. Foi isso. A partir do momento em que a gente fez a junção do funk com Marx, a gente transformou o funk em uma forma de disseminação de conhecimento.
A junção do funk com Marx acabou virando uma bomba e a repercussão disso propulsionou o debate sobre o programa “Escola Sem Partido”. Qual a sua opinião sobre esse programa que defende uma “escola sem ideologia”, mas que está promovendo um verdadeiro patrulhamento ideológico?
A ‘escola sem partido’ nada mais é do que a escola de um partido só. Essa escola não respeita o que está dito na Constituição, que é a pluralidade de ideias. Respeitar a pluralidade de ideias é respeitar o sistema democrático, em que todos nós podemos pensar e agir de maneiras diferentes. A partir do momento em que você pauta apenas uma ideologia, você está privando os alunos do conhecimento das outras. É a construção de um estudante que aceita tudo como está. Mas o papel da educação é trazer ao estudante um pensamento crítico, é fazer com que o estudante se torne um cidadão, saiba que tem direitos, mas que tem deveres também.
Outra coisa que percebemos nessa 'escola sem partido' é o discurso de ódio propagado. O que está por trás desse projeto? Quem são as pessoas que estão por trás desse projeto? Eles estão em sala de aula? Eles conhecem a realidade da escola pública? Então, existe todo um debate que deve continuar na sociedade. Nós não podemos privar os alunos do conhecimento. Eu, como professora, sou assegurada, tenho liberdade de cátedra. Eu tenho liberdade de passar aos alunos diversos teóricos. Por que eles não podem ter acesso aos outros teóricos e a outras linhas de pensamento?
Mordaça
Engana-se aquele que diz que o aluno chega à escola como uma ‘tabula rasa’. Não, ele vem de uma tradição, de uma cultura, do processo de socialização no qual está inserido. Nenhum aluno chega à escola sem conhecimento. Achar que o aluno é um depósito- como se fosse uma lixeira-, onde se pode apenas jogar conhecimento, é menosprezar toda a inteligência e toda a vivência daquele estudante. A sala de aula é um processo de construção. A sala de aula é dialética. O conhecimento é dialético. E a partir do momento em que se propõe uma escola sem ideologia, se está colocando uma mordaça não só nos professores, mas também nos estudantes.
Estamos presenciando um golpe, com acirramento de posições políticas e ideológicas em âmbito nacional, o que gera uma grande tensão. Como você vê a repercussão do seu caso dentro deste contexto?
Em momentos de instabilidade política sempre há uma tendência a atitudes antidemocráticas. E essas atitudes antidemocráticas sempre são pautadas dentro do discurso de ódio. Tudo é possível, inclusive ofender o outro. Liberdade de expressão é uma coisa, mas a liberdade de expressão não anda junto com a liberdade de opressão. Ninguém tem liberdade de oprimir ninguém. Não é tirando do aluno o direito de aprender que iremos resolver os problemas sociais e políticos do Brasil. O conhecimento liberta. E como nós vamos fazer com que a sociedade se liberte, que a humanidade se emancipe, vendando os olhos dos estudantes? É impossível.
Estamos em frente ao Palácio das Araucárias [Centro Cívico], num local onde professores foram massacrados em 2015. Serve para pensar na repressão do Estado, não só aqui no Paraná, pois o que aconteceu com você pode acontecer com vários outros professores...
Eu não sou a primeira professora que está sendo reprimida nem serei a última. Alguns não vão falar por medo, até mesmo por causa desse discurso de ódio. Essa repressão vinda dessas linhas ideológicas, de direita, não vem de hoje. Nós temos o exemplo do dia 29 de abril, aqui em Curitiba [dia em que professores e servidores estaduais foram massacrados pela Polícia Militar, no Centro Cívico]. Eu estava presente neste dia. Foi um dia humilhante para nós professores. Foi um dia em que nós fomos extremamente desrespeitados enquanto classe. Foi um dia em que fomos massacrados. Outro caso que aconteceu e que repercutiu foi a questão dos estudantes secundaristas, em São Paulo, que se mobilizaram por uma questão tão básica que é a alimentação digna. E foram duplamente reprimidos. Então, toda a vez em que há uma ascensão da luta por direitos, seja de uma classe de professores ou estudantes, a gente sente os resquícios da ditadura.
Mais alguma coisa que você gostaria de acrescentar ou reforçar sobre o caso?
A única coisa que eu queria dizer para os meus alunos é que eles são pessoas incríveis. Não precisamos ter vergonha do lugar de onde viemos. Não precisamos ter vergonha de fazer parte daquela comunidade. Fazemos parte de uma comunidade unida. Eu tenho muito orgulho de ser professora deles e de continuar sendo professora deles. Nós ainda vamos construir muitas coisas juntos. É como eu sempre digo, o conhecimento não é para o aluno, o conhecimento é com o aluno. Em relação à educação e a esse assunto que gerou uma polêmica em sala de aula, nós também ainda vamos debater.
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