Entrevista

“A Psiquiatria ainda é tratada com muito descaso no Brasil”, afirma diretor de Nise

Longa que estreou em abril retrata a história da médica precursora da terapia ocupacional no país

Saúde Popular |
O longa é o primeiro filme ficcional do diretor Roberto Berliner, que até então havia produzido apenas documentários.
O longa é o primeiro filme ficcional do diretor Roberto Berliner, que até então havia produzido apenas documentários. - Reprodução

O filme Nise: O Coração da Loucura, lançado nos cinemas em abril deste ano, conta a história da psiquiatra e discípula jungiana Nise da Silveira. Interpretada por Glória Pires, Nise foi precursora da terapia ocupacional no Brasil, e construiu sua história lutando por um tratamento psiquiátrico mais humano e menos violento para os pacientes do hospital onde trabalhava, a partir da década de 1940. O longa é o primeiro filme ficcional do diretor Roberto Berliner, que até então havia produzido apenas documentários.

Para Berliner, Nise é uma das mulheres mais importantes da história brasileira. “Ela toca em assuntos que considero fundamentais para nossa civilização. Foi uma feminista, uma mulher que pensava no outro sempre, no excluído, o que é fundamental”, disse o diretor, em entrevista exclusiva para o Saúde Popular.

Nise não revolucionou apenas o tratamento psiquiátrico: foi uma das primeiras mulheres a se formar em medicina no Brasil e chegou a ser afastada da psiquiatria durante anos por posse de livros marxistas. Em 1944 voltou a trabalhar no Centro Psiquiátrico Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, período retratado pelo filme de Berliner.

Na época, a internação compulsória, tratamentos de choque e lobotomia eram amplamente disseminados nos hospitais psiquiátricos. Disposta a transformar os métodos de tratamento, a alagoana Nise introduziu a arte como terapia ocupacional, transformando uma pequena ala a qual lhe foi destinada no hospital em um berço de artistas aclamados, que tiveram suas obras expostas ao redor do mundo.

Do esforço da psiquiatra e de seus pacientes foi criado o Museu do Inconsciente, aberto até hoje no Rio junto ao Instituto Municipal Nise da Silveira, atual nome do Centro Psiquiátrico onde a médica construiu o projeto. Embora suas descobertas tenham influenciado muito o tratamento de esquizofrênicos, seu trabalho foi extremamente criticado na época, e a realidade dos manicômios no país continua opressora.

“Frequentei alguns lugares no Brasil onde se trata esquizofrênicos. O que eu vejo é que a luta antimanicomial evoluiu muito, mas a falta de interesse e de verbas destinadas às doenças mentais e ao estudo da mente humana ainda é muito grande” ressaltou Berliner, que assumiu ter se tornado apoiador do movimento pela transformação dos serviços psiquiátricos.

O filme foi vencedor do prêmio Grand Prix do 28º Festival de Tóquio, no qual Glória Pires também levou o prêmio de melhor atriz pelo papel. No evento, Berliner destacou que hoje Nise é sua “heroína”. Em um país que anonimiza suas lutas, heróis e principalmente heroínas, a história da médica nordestina pioneira da humanização da saúde mental é uma pauta não apenas cinematográfica, mas extremamente necessária.

Confira a entrevista na íntegra:

Saúde Popular: Como foi sua aproximação e escolha do tema da vida da Nise e da luta por uma psiquiatria humanizada?

Começou com o jornalista Bernardo Horta. Nos anos 80 ele acompanhou a Nise durante muitos anos, nesse período ele anotava detalhes do comportamento dela. Anos depois, através do irmão dele, o André Horta, que é um parceiro meu de trabalho há muitos anos, ele apresentou a ideia de fazer o filme e eu embarquei nela.

Eu era pouco familiarizado com o trabalho dela, apesar de já ter a conhecido e estado com ela umas duas vezes. Eu conheci através do filme do Leon Hirszman, ele é um cineasta brasileiro muito importante que fez três documentários com ela. Eu acho que a Nise talvez seja uma das mulheres mais importantes da nossa história, ela toca em assuntos que eu considero fundamentais para nossa civilização brasileira. Foi uma mulher feminista, uma mulher que pensa no outro sempre, no excluído, o que é uma coisa fundamental.

Ela teve um olhar horizontal para as pessoas de qualquer classe social, de qualquer faixa etária, qualquer cor, credo, inclusive em relação à loucura. Ela teve essa capacidade, e isso, principalmente essa visão dos excluídos, me aproximou muito do trabalho dela quando comecei esse projeto, por volta de 2002.

SP: Você dirigiu principalmente documentários. Acredita que o formato ficcional escolhido para o filme foi importante para mostrar o lúdico do trabalho de Nise?

Eu acho que fazendo uma ficção a gente acabou fazendo um trabalho mais amplo, nosso filme teve mais chance de acontecer. Eu cheguei a pensar e ainda penso em fazer um documentário sobre isso.

SP: Na sua opinião, qual a contribuição mais importante que a Nise da Silveira trouxe para a saúde mental?

Tem duas coisas muito importantes sobre a Nise. A terapia ocupacional já existia no Brasil, mas ela esquematizou e estudou profundamente isso, através da ordem dos artistas. Primeiro ela conseguiu observar esse trabalho e depois ela começou a teorizar sobre tudo que ela viveu. Outra coisa fundamental foi o trabalho que ela teve com os animais, foi um trabalho chave também na evolução da psiquiatria no Brasil.

SP: Você acredita que o filme tem servido de incentivo à luta antimanicomial?

Muito. Ele tem sido usado e vai estar à disposição para quem quiser usar nesse sentido. Quero mostrar e tenho mostrado essa luta, participado de debates pelo Brasil afora. Eu não tinha essa aproximação com a luta antimanicomial, não tinha participado disso ativamente, eu não sou do meio, mas tenho alguns amigos muito ligados a isso, e agora me engajei um pouco mais e espero ajudar. Participo quando posso, apoio e suporto.

SP: O que este engajamento com a luta antimanicomial te acrescentou desde então? Você acha que houve uma humanização das clínicas de internação desde a época representada no filme?

Acho que acabei convivendo com muitos esquizofrênicos no Brasil e até no mundo. Viajei para outros lugares, conversei com muitos psiquiatras e frequentei alguns lugares no Brasil onde se trata esquizofrênicos.

O que eu vejo é que a luta antimanicomial evoluiu muito, mas a falta de interesse e de verbas destinadas às doenças mentais e ao estudo da mente humana ainda é muito grande. Ainda tratam a psiquiatria com muito descaso no Brasil. E acho que talvez uma das chaves da evolução da gente seja justamente conseguirmos entender um pouco da mente humana.

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