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Artigo: Ocupar, resistir, produzir - estudantes dão aula de cidadania

Estudantes brasileiras/os estão ocupando suas escolas, para reivindicar direitos que deveriam ser prioritários

Redação |
Jacques Afonsin
Jacques Afonsin - Foto Crédito: OAB

No crescente número de escolas ocupadas por estudantes, agora crescendo em quase todo o país, verifica-se uma forma de protesto coletivo, em tudo semelhante a muitos outros realizados por milhares de agricultoras/es, procurando garantir o seu direito de acesso à terra, pela reforma agrária. Em cada ocupação de latifúndio, acampamento, assentamento, audiência pública ou passeata promovida contra a violação desse direito, quase sempre aparece esse lema levado pelas/os manifestantes: ocupar, resistir e produzir.

A explicação para isso é simples, repetida até o cansaço de tanto ser gritada, mas não ouvida. A reforma agrária, prevista em mais de uma lei e na Constituição Federal, é permanentemente impedida pela força econômica latifundiária, hospedada nos três Poderes da República, suficiente para imobilizá-los. Trata-se de uma verdadeira invasão inconstitucional de soberania, capaz de trocar todo o ordenamento jurídico da nação pelos interesses de quem pretenda esbulhar terras indígenas e quilombos, depredar a natureza, extinguir o Incra e a Funai, “substituir a floresta pela bosta do boi”, como denunciou com razão Dom Pedro Casaldáliga.

Sobre tudo isso cai um silêncio cúmplice de quem tem responsabilidade privada ou pública por qualquer mudança. Ai das/os sem-terra ou das/os sem teto quando ocupam qualquer latifúndio rural ou espaço urbano, pressionados pela fome ou pela falta de abrigo. O mundo vem abaixo. Num instante, todo o dinheiro que falta para os direitos humanos fundamentais sociais saírem do papel custeiam as forças públicas, os plantões judiciários, as decisões liminares, a movimentação de tropas, o uso da violência, não vá essa gentalha faminta e sem casa, provocar “grave convulsão social”, perturbando a ordem, desobedecendo a lei e a polícia.

Ninguém poderia imaginar que toda essa repressão midiática e tendenciosa, contrária a um lema típico da pedagogia libertadora do MST, esteja sendo confrontada agora por um movimento estudantil se espalhando pelo Brasil todo e, em alguns casos, já suportando a mesma violência repressiva dos mandados judiciais expedidos contra os sem terra e sem teto.

Estudantes brasileiras/os estão entrando e ficando dentro das suas escolas, para reivindicar direitos que deveriam ser prioritários de qualquer Estado, denunciando o descaso das administrações públicas com a educação de qualidade, os programas defasados e alienados de ensino, a falta de professoras/es, em grande parte devida aos seus salários incompatíveis com a importância e a grandeza da sua missão, os prédios escolares em ruínas.

Como sempre acontece com protestos desse tipo, alguns “formadores de opinião pública” já iniciaram o seu trabalho para desmoralizar o movimento, lançando sobre suas lideranças a certeza de que estão sendo manipuladas por partidos políticos e ONGs interessadas em tirar proveito próprio do noticiário sobre os protestos. Insuflam a divisão da estudantada, mostrando como, no fim dessa movimentação, vai faltar tempo para recuperação das aulas, a formatura vai se atrasar, a tão “sonhada entrada no mercado de trabalho” vai se atrasar, e assim por diante.

Resistir a isso e produzir convicção contrária – como fazem movimentos sociais populares de gente pobre já adulta para sustentar protestos semelhantes – é um desafio muito pesado para essa juventude. Quando ela se reúne, todavia, para refletir sobre a necessidade e a urgência motivadoras da sua rebeldia, legítima por toda a sua motivação, poderia se inspirar, quem sabe, numa muitas lições de um mestre brasileiro que, por toda a sua vida, combateu sem trégua as causas estruturais responsáveis pelo nosso atraso em educação e outros direitos sociais, próprios de uma vida digna.

O “imortal” Paulo Freire, em duas páginas do seu Pedagogia da Esperança, oferece ótimas dicas para a resistência contrária à injustiça e a produção dos novos caminhos das/os estudantes do nosso país, atualmente ocupando escolas, insatisfeitos com o mundo que lhes está sendo proposto, por melhor que ele se apresente, embora mais injusto seja. No contexto do seu sofrimento como exilado, imposto pelo golpe militar de 1964, diz esse mestre o seguinte:

“Alcançar a compreensão mais crítica da situação de opressão não liberta ainda os oprimidos. Ao desvelá-la, contudo, dão um passo para superá-la desde que se engagem na luta política pela transformação das condições concretas em que se dá a opressão.” {…} Enquanto, no meu caso, foi suficiente conhecer a trama em que meu sofrimento se gestava para sepultá-lo, no domínio das estruturas sócio-econômicas, a percepção crítica da trama, apesar de indispensável, não basta para mudar os dados do problema. Como não basta ao operário ter na cabeça a ideia do objeto que quer produzir. É preciso fazê-lo. A esperança de produzir o objeto é tão fundamental ao operário quão indispensável é a esperança de refazer o mundo numa luta dos oprimidos e das oprimidas. Enquanto prática desveladora, gnoseológica, a educação sozinha, porém, não faz a transformação do mundo, mas esta a implica”.

Como demonstra logo depois, o “aqui” e o “agora” do/a educador/a são o “lá” da/o educanda/o. Para que essa/e educanda/o ultrapasse o “aqui” do/a educador/a, essa/e tem que partir do aqui da/o educanda/o e não do seu!

A estudantada atualmente presente nas escolas, em protesto cívico por sua dignidade e cidadania, talvez nem conheça essa lição, mas, como toda a gente oprimida, está dando uma aula para o país de como o direito humano fundamental à educação, está ameaçado de ser tão maltratado, aqui, como não se deve mas assim mesmo se trata as/os pobres sem terra e sem teto.

 

Jacques Távora Alfonsin é procurador aposentado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.

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