Altamira

Casas ficam permanentemente alagadas após construção de Belo Monte

Fenômeno não foi previsto pela Norte Energia, responsável pela obra, e por órgãos de fiscalização

Altamira (PA) |
“Virou uma lagoa mesmo”, reclama Adriana Silva Ferreira
“Virou uma lagoa mesmo”, reclama Adriana Silva Ferreira - Elisa Estronioli

Desde que a hidrelétrica de Belo Monte virou realidade, um fenômeno imprevisto está tirando o sono de moradores do bairro Independente I, na cidade de Altamira (PA). Poços estão transbordando, quintais estão permanentemente alagados e a água brota até do chão da cozinha. Tudo isso em um local no qual a concessionária Norte Energia, dona da hidrelétrica, sempre negou a possibilidade de haver impactos.

João Pinto Filho, 74 anos, mostra o chão da casa coberto pela água, que mina debaixo do piso. “Moro aqui há 12 anos e nunca alagou desse jeito. Será que já é problema da usina?” – questiona. Diante da situação, ele passou a receber aluguel social da prefeitura. Porém não consegue encontrar casa no bairro compatível com o valor do benefício: R$ 600. A quantia está defasada em relação ao preço dos aluguéis na cidade após a construção de Belo Monte - embora o auge da especulação tenha passado e os preços estejam começando a cair.

Belo Monte, a segunda maior hidrelétrica do país em capacidade instalada, com 11.233 MW, já causou a remoção de mais de 40 mil pessoas na cidade de Altamira. Com o frenesi da construção da barragem, em menos de três anos a população da cidade saltou de 99 mil para mais de 150 mil pessoas, na estimativa da prefeitura. A maioria dos atingidos vivia em casas de palafitas no entorno da orla do rio Xingu e dos igarapés que cortam a cidade.

As famílias foram removidas para os chamados “reassentamento urbanos coletivos (RUCs)”, loteamentos com casas padronizadas feitas em concreto com 63 m³, e outras receberam indenização em dinheiro. Embora com muita precariedade (um problema comum nessas áreas é, por exemplo, a falta de água), os RUCs se tornaram uma vitrine da Norte Energia, que os usa para propagandear como melhorou a vida de milhares de pessoas que antes viviam em espécies de favelas fluviais. O consórcio é formado por estatais do sistema Eletrobrás, fundos de pensão e empresas privadas.

Após a remoção dessas famílias, que teve seu auge em 2014, as típicas construções de madeira continuaram a existir em dois locais: uma área no bairro Independente I e outra no Independente II, cada uma com cerca de 400 famílias. A princípio, essas foram consideradas áreas de “lagoa”, isoladas do reservatório, e a única proposta da Norte Energia - concessionária da hidrelétrica de Belo Monte - era o monitoramento do lençol freático e a instalação de duas bombas de drenagem no Independente II.

Após mais de um ano de mobilizações frequentes e organização no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), os moradores do Independente II conseguiram que o Ibama condicionasse a emissão da licença de operação (LO) da barragem ao cadastro e remoção das famílias. Comprovou-se então que havia ligação entre o reservatório e o bairro e que este ficaria permanentemente alagado. O sistema de drenagem, acionado de maneira provisória durante o inverno deste ano (período das cheias na Amazônia, cujo ápice é o mês de março e abril), nunca funcionou.

Para o bairro vizinho Independente I, no entanto, nunca houve o reconhecimento de que aquela área pudesse ser impactada. Os laudos emitidos pela Norte Energia e aprovados pelo Ibama sempre afirmaram que ali a altura mínima era 102 metros acima do nível do mar, portanto, acima do limite estabelecido pela Norte Energia para a remoção das famílias (até 100 metros acima do nível do mar).

A região da lagoa, já ocupada antes da construção da barragem, sofreu um adensamento populacional e tornou-se o último reduto possível para a população mais pobre viver na região central da cidade. Ali a situação beira à calamidade pública. A água, que antes subia e descia seguindo o regime de cheias do rio, agora está constantemente parada. A poluição é agravada pela ausência de serviços públicos básicos como coleta de lixo, rede de esgoto e fornecimento de água. Palafitas são os únicos caminhos possíveis entre uma casa e outra. O mau cheiro é um incômodo constante. É impossível acabar com os criadouros de mosquitos. Ano passado, uma criança de três anos morreu afogada ao cair das tábuas, em um ponto onde a profundidade chega a quase três metros.

Seu João nunca imaginou que podia sofrer alguma consequência com a construção da barragem. Sua casa é de alvenaria, próxima à área da “lagoa” do Independente I, onde as ruas foram aterradas parte pelos moradores e parte pela própria prefeitura. Agora, a água toma conta de muitas casas como a sua. É possível ver várias casas fechadas ao redor da área da “lagoa”. Em casos mais graves, famílias saíram e foram viver de aluguel em outros locais, outras fizeram aterros.

Em outra rua da vizinhança, Adriana Silva Ferreira mostra seu quintal totalmente coberto pela água. Não tem mais ânimo para arrumar a casa desde então. Perdeu o milho e a macaxeira que plantou. E à noite tenta dormir ao embalo do coaxar dos sapos. “Virou uma lagoa mesmo”, reclama.

É comum ouvir de moradores mais antigos que ali há várias nascentes, onde as pessoas pescavam. No local, também ocorria a desova de curimatás. Com o aterro de parte da cidade para a abertura de avenidas, a área ficou isolada do rio. No entanto, embora os aterros tenham sido feitos anos atrás, apenas agora, após o enchimento do reservatório da barragem, a situação chegou a este ponto.

Belo Monte já gera energia desde meados de abril e foi oficialmente inaugurada há uma semana, no dia 5 de maio. A presidenta Dilma Rousseff esteve presente na cerimônia, junto a políticos, autoridades locais, movimentos sociais da região e operários da obra, que prestaram apoio a seu governo. “Sabemos que essa usina foi objeto de controvérsias, muito mais pelo desconhecimento do que pelo fato de ela ser uma usina com problemas. As pessoas desconheciam o que era Belo Monte”, afirmou a presidenta. Após enchimento do lago, a impressão é que nem mesmo a Norte Energia conhece Belo Monte.

Edição: Rafael Tatemoto

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