Adolfo Pérez Esquivel, do alto de seus 84 anos de idade, esteve em Curitiba na última sexta-feira, 29 de abril. Sua passagem pelo Brasil se deve à solidariedade, que trouxe consigo na bagagem, à democracia brasileira, degradantemente vilipendiada pelos interesses escusos do grande capital e das elites conservadoras nacionais – não bastassem os últimos treze anos de simulacros, cooptações e conciliações.
Em Brasília, Pérez Esquivel conversou com os senadores – e causou estrondo ao denunciar o golpe de cima da mesa diretora da casa –, com o presidente do Supremo Tribunal Federal, com o secretário geral da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil e com a presidenta da república. Mas foi no dia seguinte, na marcante data para os paranaenses de 29 de abril, que ele se encontrou de fato com o povo. À tarde, participou do ato que rememorou um ano do massacre dos professores e servidores públicos estaduais na praça Nossa Senhora de Salete, coração do Centro Cívico; sua fala foi breve – deve ter durado cerca de cinco minutos –, mas estimuladora do bom combate que os paranaenses estiveram dispostos a realizar e que os brasileiros terão de continuar travando. Já à noite, conversou com os Advogadxs pela Democracia, com charla de cerca de quarenta minutos, seguida de debate com o público militante e universitário presente, no salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.
O argentino, que foi prêmio Nobel da paz em 1980, mais uma vez cerrou fileiras na luta e deu uma aula de democracia. De seus ensinamentos, destaco sete lições mais do que pertinentes para o turbulento momento pelo qual passa a América Latina, em geral, e o Brasil, em especial.
1. Falar sobre a paz é falar sobre a violência
Talvez a sombra mais contraditória que possa seguir um defensor da paz, como é o caso de Pérez Esquivel, seja a violência. Não por acaso, o intelectual argentino foi preso por pelo menos três ditaduras latino-americanas, no Brasil e no Equador, em 1975, e na Argentina, em 1977, detenção esta a qual lhe rendeu quatorze meses de sua vida e muita tortura. Tudo porque se destacava como ativista defensor dos direitos humanos, especialmente no âmbito da instituição que cofundara, o Servicio Paz y Justicia para América Latina.
Também não é à-toa que hoje, em pleno 2016, Pérez Esquivel continue peregrinando o continente e o mundo para defender seu ideário de paz. O Brasil, seus movimentos populares e sua democracia pediram sua presença e ele não se furtou. Para cá veio e enunciou para quem quisesse ouvir: há um golpe de estado institucional em marcha no Brasil. Uma vez mais o pacifista mostrou-se um grande polemista ante os defensores da golpe à constituição e a sombra da violência se fez novamente presente.
2. A democracia é impossível, se construída sobre a impunidade dos crimes das ditaduras
Adolfo Pérez Esquivel se declara um sobrevivente dos regimes autoritários das ditaduras latino-americanas. Como ele, muitos sofreram e, inclusive, pagaram com suas vidas em nome da liberdade. No entanto, esta violência, traduzida em seqüestros, torturas, assassinatos e desaparecimentos cometidos pelas ditaduras do continente, não é uma criação autóctone, tem sua genealogia nas guerras do Vietnã, da Argélia e da Espanha. Os militares e, inclusive, outros setores da sociedade aprenderam seu conteúdo e prática nas escolas de guerra do Panamá e dos Estados Unidos.
Desse modo, é preciso, nos dias de hoje, estar atento para as conseqüências de não se acertar contas com o passado e manter impunes os algozes da democracia de ontem, pois são os mesmos, nem que como mera inspiração, que hoje buscam solapar as conquistas democráticas no Brasil e em outros países. E Pérez Esquivel é taxativo: não há democracia sobre a impunidade, o autoritarismo e a violência contra a democracia, já que, para lembrar o dito popular, “se não sabe para onde vai, regresse para saber de onde veio”.
3. A democracia não é só votar, mas é o direito à igualdade para todos e todas
Ao contrário do que poderia parecer, Pérez Esquivel não é defensor da simples forma que a democracia garante. Ao contrário. Não basta, portanto, o sufrágio universal para caracterizar uma democracia, é necessário promover a igualdade.
Se é verdade que no momento atual as camadas mais progressistas do povo brasileiro se comprometem em denunciar e desbaratar o golpe de estado – travestido de institucionalidade em funcionamento – não é menos verdade que este compromisso não se esgota com a defesa do resultado da escolha popular, já que a crítica às políticas que conciliam a macroestrutura neoliberal com um programa conjuntural neodesenvolvimentista devem permanecer na postura das organizações sociais e movimentos populares.
4. A democracia não é concessão, é conquista
Mas como chegar à igualdade? Se a forma do direito burguês não é suficiente, é preciso colocar no centro da arena a participação popular, suas reivindicações e contestações.
Nesse sentido, há que se valorizar a cultura popular e sua autodeterminação com relação a interesses que lhes são alheios. Pérez Esquivel, aqui também, é muito elucidativo, ao defender que a porta de entrada para a subordinação dos interesses democráticos dos povos não está em fatores econômicos, pura e simplesmente, mas ao nível cultural. Porque se as mentes já se encontram colonizadas quando os planos de austeridade chegarem, o trabalho do grande capital será muito mais fácil. Daí a necessidade de um contínuo labor em nome da luta democrática, pois “não se ganha a democracia, se a constrói”.
5. Um golpe à democracia no Brasil é um golpe à democracia em toda a América Latina
Não é de hoje que Pérez Esquivel está comprometido com a luta nuestroamericana. No entanto, os episódios mais agudos que explicam o avanço golpista no Brasil se conectam com o recente mosaico de intentonas que cobriram toda Nuestra América.
O intelectual argentino, com muita pertinência, relembra as tentativas abertas de golpe de estado nos países da ALBA, sendo que os exemplos da Venezuela, da Bolívia e do Equador são os mais eloqüentes. Nestes países, porém, o golpismo foi barrado pelas forças populares e novas formas de desestabilização institucional foram sendo forjadas. Os exemplos de Honduras e do Paraguai são o novo ato desta trágica peça, em que se mobilizam argumentos de racionalidade formal-jurídica para legitimar deposições de líderes políticos eleitos pelo voto popular. E o caso brasileiro parece ser a consolidação disto que se vem chamando de golpe branco, institucional ou jurídico-parlamentar-midiático.
O cenário continental, contudo, é ainda mais preocupante, considerando o aprofundamento da violência em países como México e Colômbia e a vitória eleitoral do receituário neoliberal puro, após um hiato heterodoxo, como é o caso da Argentina. Portanto, diz-nos Pérez Esquivel, “não é possível que se dê um golpe de estado no Brasil, porque não é só um problema para o Brasil, é um problema para todo o continente”
6. É preciso resgatar o comunitário e forjar a luta, a unidade e a resistência
Não há outra saída, ensina Pérez Esquivel: para barrar o golpismo, o conservadorismo, para punir os crimes da ditadura, para conquistar uma democracia de conteúdo igualitário é necessário forjar a unidade popular em luta. E a resistência deve recobrar o papel histórico do comunitário, do campesinato, dos povos indígenas, das comunidades periféricas das grandes cidades.
A tarefa parece estar na mão das organizações que o povo forjou para si. Seja por meio de partidos, sindicatos, cooperativas ou movimentos sociais, a missão é enraizar, nas bases populares, o compromisso democrático, com a libertação e igualdade material. Assim, independente dos eventuais e conjunturais reveses, não se deve desistir da luta.
7. A luta é feita de arte, de beleza e de vida
Nas duas vezes em que Adolfo Pérez Esquivel falou publicamente, em Curitiba, foi antecedido pela radical (no sentido de postura combativa mas também de resgate das raízes) musicalidade de Pereira da Viola. O rasqueado do violeiro mineiro encantou o ativista argentino. E não poderia ser diferente, já que Pérez Esquivel se destacou, dentre outras coisas, por ser um artista da pintura, sendo que as obras “Via Crucis Latinoamericano y Paño Cuaresmal” e “Mural de los Pueblos Latinoamericanos” estão entre as mais destacadas, por seus traços e diálogos com as culturas populares e seu comprometimento com nosso continente.
Diante do canto de Pereira da Viola, Pérez Esquivel demonstrou sua imensa sensibilidade: “nas lutas mais duras nunca podemos deixar de sorrir à vida”. Assim, por maiores que sejam as dificuldades que se venha a enfrentar, não se pode menosprezar a beleza da natureza, a arte do povo e o milagre que continua sendo a vida.
E esta é a bela e vital lição que nos lega, em sua passagem por Curitiba, o defensor da democracia Adolfo Pérez Esquivel.
*Ricardo Prestes Pazello é professor do curso de direito da UFPR, secretário-geral do IPDMS e militante da Consulta Popular do Paraná.
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