CIDADE À VENDA

Projetos de arranha-céus em Porto Alegre podem acabar nas gavetas do esquecimento

Enchentes deste ano trazem reflexões sobre processo recente de transformação da capital gaúcha em uma Balneário Camboriú

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
"Não há lugar que se vá que não tenha placas da Goldztein Cyrella, Melnick, Maiojama, Ivo Rizzo e mais algumas. Se apossaram de quase tudo" - Foto: Eugênio Bortolon

As enchentes e os alagamentos de extensas áreas ribeirinhas do Guaíba, do Lami ao Humaitá, podem endurecer a consciência do prefeito, vereadores e executivos de Porto Alegre e deixá-los em estado de alerta. Verticalizar a cidade com espigões, arranha-céus e prédios descomunais definitivamente não é uma ideia sensata, atestam técnicos e especialistas urbanos. Mesmo assim, a capital gaúcha vive momentos de delírio de crescimento predial. Não tem mais terreno vazio que já não esteja nas mãos de algumas destas construtoras para futuros empreendimentos gigantescos e insossos.

Casas antigas ou de passado histórico também estão sendo compradas e derrubadas. Não há lugar que se vá que não tenha placas da Goldztein Cyrella, Melnick, Maiojama, Ivo Rizzo e mais algumas. Se apossaram de quase tudo. E as licenças para construção enfrentam facilidades nunca dantes vista. Um dirigente da Melnick afirmou, em entrevista à Rádio Gaúcha, que o seu grupo tem mais de R$ 1 bilhão de áreas em Porto Alegre para construir ao longo dos próximos anos.


Casas antigas ou de passado histórico também estão sendo compradas e derrubadas / Foto: Eugênio Bortolon

Uma avenida, antigamente bucólica e cheia de charme, a Nova York, entre 24 de Outubro e Marquês do Pombal, no Bairro Auxiliadora, por exemplo, mudou o seu perfil nos últimos 20 anos. Virou paraíso dos espigões. Já foram construídos três nos últimos anos, outro está em obras e mais um está em projeto, com a compra pela Melnick de três casarões de quase 100 anos e em fase prévia de demolição. Vai virar um caos.

Porto Alegre caminha para a “camboriuzação’, disse o jornalista Elmar Bones em debate sobre as cheias de Porto Alegre e sobre o desenfreado ritmo na construção de espigões na cidade na live Coonline, no YouTube. Balneário Camboriú, no litoral norte catarinense, como se sabe, é o paraíso dos arranha-céus no Brasil, com seis dos 10 prédios mais altos do país – ainda que alguns estejam em reta final de construção. No ano passado, a cidade já se isolava na liderança do ranking feito pelo Skyscraper Center, site referência na catalogação de arranha-céus pelo mundo. O One Tower de Camboriú se destaca como o prédio mais alto do Brasil. Ele atinge uma impressionante altura de 290 m.

Breve, porém, será superado pelo Yachthouse Residence Club (o prédio do jogador Neymar), com a instalação de pináculos no topo das torres, que o levarão de 281 para 294 metros de altura. A praia já está até perdendo o brilho do sol em certos horários por causa destas loucuras arquitetônicas.

Vivas, então, para a loucura e para o desleixo com as precauções sanitárias, disse o especialista Charles Henrique Voos. Ele é catarinense, sociólogo, mestre em urbanismo, doutor em Sociologia e autor do livro “Quem Manda na Cidade”. Para ele, ‘o crescimento vertical e de forma abrupta pode causar problemas em grandes chuvas, inundação dos rios, péssimo tratamento de água e mais péssimo ainda o tratamento de esgoto. Então, isso vai trazer outros problemas que a gente não consegue enxergar, pois não se sabe como está organizado o subsolo das cidades".


Pelo jeito, o projeto chamado de Complex 4D, com 42 andares e 130 metros de altura, vai adormecer na gaveta e ser esquecido por quem sonhava em morar à beira do Guaíba / Divulgação

É o caso do que poderia acontecer em Porto Alegre, caso o Guaíba tivesse ficado quietinho. Ele jogou para fora dos limites as suas águas, lamas, barros e outros entulhos no mês de maio. Foi uma tragédia absoluta, ampla e irrestrita, com direito a sérias consequências, que agora vivemos.

Aprovado em 2022, o plano diretor específico para o 4º Distrito tem (ou teria) isenção de impostos e incentivos tributários para impulsionar o desenvolvimento da região, formada por cinco bairros – Floresta, Humaitá, Navegantes, São Geraldo e Farrapos. A maior novidade seria a liberação do índice construtivo, sem limite de altura, para possibilitar a criação de “marcos arquitetônicos” na região. Os investimentos previstos eram de R$ 1 bilhão.

Porto Alegre seria assim a Capital com os prédios mais altos do Brasil. Pelo jeito, o projeto chamado de Complex 4D, com 42 andares e 130 metros de altura, vai adormecer na gaveta e ser esquecido por quem sonhava em morar na beira do Guaíba. O assunto teve gritaria aqui e ali na hora da aprovação, mas nada que fosse adiante e questionado em todas as mudanças que provocaria na orla. Ninguém pensou em cheias, alagamentos, esgotos. A iniciativa foi aprovada pela maioria governista da Câmara. Só se falou e se elogiou a criação de empregos.

Com o novo plano diretor do 4D, o céu seria o limite nas regiões próximas à Estação Farrapos, Cairu, Gerdau e Rodoviária, justamente regiões mais afetadas pelas águas de 2024. “A ideia é criar edifícios icônicos diferenciados”, afirmou, na época, o vereador Ramiro Rosário, relator da proposta. Uma emenda de sua autoria vai impulsionar ainda mais os arranha-céus no 4D – se isso vier a sair do papel, o que é muito improvável.

Também está aprovada a redução do valor previsto para destinação de área pública de 20% para 10% nos futuros empreendimentos imobiliários, como forma de incentivar ainda mais os investimentos da construção civil na região. Até mesmo a segunda etapa do Complex 4D pode ser reestudada com esta nova regra. Com bom senso tudo isso deverá ser encaminhado para as gavetas dos desejos. Antes disso, a cidade vai ter que repensar como tratar as suas águas, o Guaíba e os rios que têm a sua foz por aqui.

O sonho, ou delírio, do vereador Ramiro era ver em Porto Alegre prédios com 200 metros de altura. Hoje o máximo permitido é quatro vezes menor (52 metros de limite). “É preciso adensar a cidade para melhorar o trânsito, a segurança e a qualidade de vida das pessoas”, afirmou ele, na época, ao Sul21. Fora Balneário Camboriú, que possui dezenas de arranha-céus, São Paulo, Curitiba, João Pessoa e Goiânia são as capitais com prédios acima de 100 metros. Mas nenhuma delas têm edifícios com mais de 200 metros, o que só é visto na famosa praia catarinense.

Hoje, conforme os dados do Censo 22, a capital gaúcha possui 687.679 domicílios, dos quais 276.628 (49,55% do total) são apartamentos, 264.811 (47,44%) são casas, 15.797 são casas de vila ou condomínio (2,83%), 907 são cortiços (0,16%) e 109 estruturas degradadas ou inacabadas (0,02%). Com relação ao Censo 2010, o número de apartamentos cresceu em 16%, era de 237.297. Já o número de casas, que era de 254.052, cresceu apenas 4,2%.

O levantamento também destaca que, entre todos os domicílios identificados em Porto Alegre, 558.252 estão ocupados (81,32% do total), 100.997 (14,71%) são considerados como não ocupados vagos e 27.242 (3,97%) são considerados não ocupados de uso ocasional. Entre permanentemente ocupados, a média de moradores é de 2,37 por domicílio.

* Jornalista

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko