POR UM PROTOCOLO

Alerta máximo para a vida: a visita de coletivos feministas ao Abrigo 55 no RS

Localizado em Canoas (RS), ficou conhecido nas últimas semanas como aquele onde ocorreram situações de violência sexual

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Nas enormes quadras deste lugar, que é um ginásio esportivo, foram montadas "casas" - Foto: Arquivo Pessoal

O abrigo 55, localizado entre os 7 pavilhões da Ulbra em Canoas (RS), ficou conhecido nas últimas semanas como aquele onde ocorreram situações de violência sexual e assédios – olhares ameaçadores para as mulheres e crianças, que exigiram intervenção policial, prisões e o sumiço da maioria das vítimas, dali deslocadas para outros abrigos para sua autoproteção, ou evadidas pelo medo de outras violências.

Estes casos confirmaram os alertas feitos, já na pandemia da covid-19, ainda tão presente em nossas vidas, de que os desastres sanitários, ambientais ou guerras, fontes de crises humanitárias, atingem mulheres e crianças de forma drástica, desproporcional em relação ao restante da população.

As violências não deixaram de ocorrer em meio a esta emergência ambiental. Assaltos seguidos de estupros logo após operações de salvamento, violências e truculências em abrigos e dois feminicídios são conhecidos.

Para conhecer a realidade, relatar e pedir providências, na última quinta-feira (16) algumas mulheres, atuantes em coletivos feministas do Rio Grande do Sul, empunhando um questionário e com os corações pulsantes, visitaram este local ao lado de representantes do governo estadual, autoridades de instituições de garantia de direitos e conselhos da mulher e dos direitos humanos.


Visita foi realizada para conhecer a realidade, relatar e pedir providências / Foto: Arquivo Pessoal

Para chegar lá, formou-se um corredor humanitário para nossa passagem. Os nossos olhares expectantes e risadas nervosas, temores, nos diziam que não são todos os dias que se viaja num micro-ônibus com sirenes de carros de polícia ligadas à frente e atrás em forma de escolta.

Assim como não se experimenta sempre uma tragédia ambiental como essa, que já sabíamos que um dia poderia acontecer, mas não pensavamos que seria com a gente, agora, quem sabe em outro lugar, quem sabe daqui a alguns anos.

O que estamos passando aqui no Rio Grande do Sul — um Estado devastado pelo modelo econômico predatório que invadiu cursos de rios, eliminou barreiras naturais para o plantio de soja e criação de gado, avançou na construção de aterros e desconsidera se ali ainda era rio ou lago — é fruto não só da natureza.

Foi deixada para depois a prevenção, como a manutenção de um imenso dique ao redor do curso dos rios que afluem para o lago Guaíba.

Foi prevaricada a obrigação de manter esta estrutura firme, robusta, resistente ao avanço das águas, árvores arrancadas, terras roladas, derramadas.

Há anos nos previnem estudiosos, pesquisadores, políticos mais conscientes e os movimentos de pessoas afetadas por barragens sobre o que poderia provocar esse caos pós apocalíptico, onde não faltam vítimas.

Esse é o roteiro cinematográfico que passa na cabeça enquanto observamos do ônibus os armazéns do Porto submersos, as ruas já inexistentes, a rodoviária — que achamos horrorosa, mas que servia a tanta gente — um corredor humanitário construído de pedras e aterro a partir da derrubada de uma passarela pedestres.

Já vi muitos filmes de ficção norte-americanos espetacularizados, mas hoje estamos roteirizando o nosso Day After, que ainda não é after, pois mantém-se ainda no seu movimento, e seus efeitos estão em todas nós. Éramos gente pós pandêmica, hoje somos todos uma nova forma de sobreviventes.

Sob a chuva, nossa chegada ao pavilhão 55 cria uma pequena multidão reunida ao redor de um voluntário D., que ali resiste e coordena desde o primeiro dia. Ele vai passando dados, situações, quase um grito de ajuda. Era o primeiro dia que a comida chegava na hora certa. Nos dias anteriores atrasou muito e uma parte chegou azeda.

Aproxima-se uma mulher jovem, responsável pela seleção e entrega das roupas, além do controle dos banhos, da comida e das crianças. Ela se junta para responder às nossas muitas, mas muitas perguntas. Animada, quer saber se chegamos para ajudar. A gente se olha e se pergunta, e agora?


Atualmente, 12 pessoas acolhem as 850 ali abrigadas no Pavilhão 55 / Foto: Arquivo Pessoal

Há premência de ajuda. O voluntariado volumoso dos primeiros dias sumiu — gente que tenta retomar a vida no novo normal.

As 850 ali abrigadas talvez já tenham se cansado das visitas. Mas a visita é necessária. Ela será a base de uma ação para implantar um protocolo nacional que ajudamos a construir, para proteger em especial mulheres e crianças, e que está sendo finalizado pelo Ministério das Mulheres. Pois é absolutamente inaceitável que essas pessoas, de todas as idades, de todas as cores, com suas particularidades, sejam mais massacradas por serem mulheres.

Enquanto se dá esse primeiro contato, olho ao lado, estarrecida. Há uma fila para a comida, uma fila para o banheiro, uma fila para o desodorante, uma fila para a fralda e para o absorvente, homens que circulam fumando no lado de fora.

Há uma mulher sentada numa cadeira num canto, amamentando um bebê. Me aproximo. Contive a vontade de chorar, pois não posso. Estou ali como uma ativista feminista. Mas também, como uma jornalista e mulher.

Pergunto se está bem. Ela me olha bem no olho, abaixa a cabeça, se prende ao bebê, e desanda a falar. Perdeu tudo: casa, móveis, utensílios, roupas, documentos, remédios. Saiu com a roupa do corpo.

"Desde quando está aqui?"

"Acho que uns seis dias, que dia é hoje mesmo?"

O marido se aproxima, traz algo nas mãos. É carinhoso com ela. Só me diz: "Está difícil! Mas a gente vai reconstruir".

Dou algumas informações, desejo tudo de bom, força, e, até mesmo sem crer, peço que deus nos ajude e que fiquem bem.

Há muito a ver e conversar. Tenho um questionário feito às pressas pela manhã no Centro Vania Araujo para não esquecer nada. Volta a voluntária, uma jovem advogada negra, P. que responderá às nossas perguntas, diligentemente, no meio do caos.

Ali já não havia mais nenhuma mãe solo, todas já haviam sido levadas a um abrigo específico, por suas vontades. Ficaram no local famílias inteiras, mas inteiras mesmo! Mulheres e seus companheiros ou não, suas crianças e adolescentes, suas mães e pais, alguns gatos em gaiolas e centenas de cachorros, na maioria presos.

Nos corredores há casinhas para eles também, com seus olhares semelhantes aos das pessoas. Não sei se neste momento os bichos percebem a tristeza das perdas, ou se são as pessoas, com suas perdas, que mantém um olhar de animais perdidos em busca de suas casas.


O abrigo 55 fica localizado entre os 7 pavilhões da Ulbra em Canoas / Foto: Arquivo Pessoal

Nas enormes quadras deste lugar, que é um ginásio esportivo, foram montadas "casas". Colchões sobre paletes e muitas cobertas tentam isolar do frio que vem do chão de cimento. Roupas são dependuradas em redes de proteção.

As pessoas acomodadas conversam. Há crianças a brincar, cães latindo ou dormindo abraçados em seus tutores. Algumas pessoas dormem no meio do ruído incessante.

As pessoas vieram sem seus pertences, mas carregam nos seus corpos as marcas da tragédia e também seus adoecimentos anteriores. Algumas conseguem aceder ao grupo que oferece atenção em saúde mental. Mas é muita gente no mesmo lugar.

Uma equipe de saúde da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) e da Prefeitura faz a entrega de receitas para as medicações de nicho em nicho — alguns estão enfeitados e com a cara das ocupantes.

Este lugar foi marcado pelas violências de gênero. Ali se repetem as cenas vividas pelas mulheres em casa, mas agora, quando reaparecem, há a intervenção policial. A partir da sexta-feira a equipe do Centro de Referência da Mulher (CRM) de Canoas Patrícia Esber passaria a atender.

Não se trata apenas de segurança pública, mas de relações desiguais que a nossa sociedade construiu e ainda mantém como naturais. Homens que agridem são retirados do local, alerta uma das policiais que nos acompanha em cada passo.

O local reserva riscos. Há disputa de facções, há gente alterada, há homens violentos. Há histórias de perdas, muitas... de partos feitos às pressas nos hospitais que ainda não colapsaram. Mulheres grávidas em estado avançado, outras que descobriram ali uma gravidez e precisam de exames que agora não podem fazer.

Entregamos folhetos, damos uma palavra de esperança, não invadimos quem não está pra conversa. Num dos encontros com mulheres, uma busca fraldas especiais para seus dois filhos, que se encontram em outro pavilhão. São autistas, era uma “mãe atípica”. As crianças precisam de muitas fraldas, pois não contém seus fluxos naturais.

Decidimos encarar novamente a chuva, mas fomos acudidas por uma equipe da polícia civil. Uma viatura nos leva a onde se abrigam as famílias com pessoas também “atípicas”, cuja convivência é mais difícil.

Chegamos lá em má hora para nós, pois estavam todas reunidas num salão para pactuar normas de convivência.

Era a melhor hora para elas. Outra voluntária, também P., nos explica as inúmeras dificuldades de manter o convívio entre pessoas tão diversas, com necessidades específicas.

O abrigamento pelo jeito não será para um dia, uma semana ou um mês. Para muitas dessas pessoas, será uma longa espera para que a vida possa seguir seu curso normal.

Casas perdidas, rendas comprometidas, empregos incertos, saúde física e emocional abalada. Todo mundo tem pressa para que a ajuda garantida pelo governo federal chegue a cada uma delas.


O abrigamento para muitas dessas pessoas será uma longa espera para que a vida possa seguir seu curso normal / Foto: Arquivo Pessoal

As respostas da população foram cruciais para a construção desses lugares, que são entre 700 ou 800 no estado. Não se sabe o número exato, nem quantos estão dentro deles ou quem são. Mas que o Estado brasileiro, historicamente distante do povo, tem que estar presente agora, talvez como não esteve antes.

Não foi uma bomba que caiu do céu, não foi um desastre nuclear, não foi um vírus descontrolado. Foi o resultado de todas as intervenções humanas, por ganância, ignorância ou pura irresponsabilidade.

Há alguns anos atrás, quando viajava por um país rico, a convite do Parlamento Europeu, me impressionou um enorme mural urbano em Bruxelas, em que um planeta derretia, imagem que passou a simbolizar o aquecimento global. Chegaríamos a este ponto?

Percorrendo as ruas de Nairobi, no Quênia, país que visitei algumas vezes também pelo ativismo feminista, a crise sanitária pela epidemia de Aids tinha rosto de mulheres e meninas, conformando uma crise humanitária com gênero, classe social e muita violência.

Logo depois integrei uma força tarefa feminista em apoio às mulheres vitimadas pelo terremoto no Haiti, a convite da Fundo de Populações das Nações Unidas, da Rede de Saúde das Mulheres Latinoamericanas e do Caribe e da Radio Feminista Internacional, para ajudarmos a construir um plano de emergência frente às violações que se iniciaram nos abrigos após os abalos.

E, ao acolhermos em Santo Domingo as mais importantes lideranças do movimento de mulheres haitiano, dentre as que sobreviveram, vimos olhos estalados. Eram mulheres que desde o “tremblor” não conseguiram mais dormir, não comer, mal conseguiam falar.

Eram médicas, advogadas, cientistas, professoras, e não tinham mais um país para chamar de seu. Tinham amigas e companheiras que se foram, familiares para sempre partidos, e tinham que cuidar das outras mulheres e meninas, pois a vida teria que continuar.

O que se diz é que abrigos são o mundo num só lugar. São os lugares que se têm quando se perde uma casa. Aqui, 463 cidades comprometidas.

Esses espaços, para mim, são alertas para os efeitos de um modelo econômico que quase esgota os recursos do planeta. São um símbolo da centralidade do tema do desenvolvimento sustentável e justo como um único caminho possível.

As mulheres estão fazendo a sua parte. Estão nos abrigos carregando tudo nas costas, nas cozinhas comunitárias, nas hortas urbanas afetadas pelas chuvas, nas plantações perdidas, nas frentes de trabalho pelo acolhimento de outras mulheres e famílias inteiras, nas equipes profissionais e de voluntárias. Estão percorrendo abrigos para impedir violações, fazendo campanhas pelo que não é visto como necessário, em reuniões a construir políticas na perspectiva do feminismo, da igualdade e do respeito.

Reafirmo, mulheres não podem pagar a conta mais alta e terão que ser não só destinatárias dos recursos que venham a ser investidos para a reconstrução de suas vidas, com dignidade, sem violência, numa crise ambiental. Terão que ser protagonistas, acima de tudo, sendo essa uma oportunidade para que a sombra que as invisibiliza se transforme em força para sua cidadania.

* Telia Negrão é jornalista e cientista política. Integrante do coletivo Querela Jornalistas Feministas e do Levante Feminista Contra o Feminicídio, Lesbocídio e Transfeminicídio.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko